Memórias
por DietrichNo salão de mármore da fortaleza de Corinto, Xena ocupava seu lugar no centro de uma mesa comprida, cercada por conselheiros de aparência sóbria. A sessão administrativa era, para ela, um exercício de paciência. Enquanto seus olhos focavam no conselheiro que, com uma calma entorpecente, dissertava sobre as rotas de abastecimento na fronteira com a Trácia, a mente de Xena vagava brevemente por lembranças dos campos de batalha. Ainda assim, permanecia atenta aos detalhes.
– … e o problema se estende ao longo do vale de Arcádia, onde a colheita foi prejudicada pela seca. Precisaremos deslocar reservas das regiões ao sul para prevenir a escassez – continuava o conselheiro, sem se deter.
Xena assentiu, com um ar de compreensão e determinação. Com um breve movimento da mão, interrompeu o conselheiro.
– Envie reforços para garantir a proteção dos carregamentos – Xena falou, a voz baixa, mas carregada de autoridade – A última coisa de que precisamos são arruaceiros interceptando os mantimentos. E libere um decreto temporário de alívio nos tributos do vale de Arcádia. Quero que os agricultores saibam que o Império não os abandonará.
Os conselheiros concordaram em uníssono, anotando suas instruções, e Xena prosseguiu, resoluta e incisiva, despachando questões sobre impostos, rotas de comércio e defesa. No entanto, mesmo quando aparentava completo controle, a impaciência era visível no pequeno tamborilar de seus dedos contra a mesa. O conselheiro seguinte se adiantou para discutir o novo plano de construção de estradas que interligaria as cidades da Grécia e ampliaria o controle do Império.
No entanto, a voz dele logo se dissolveu na monotonia do salão. Xena permitiu-se uma respiração longa e sutil, enquanto mantinha o semblante atento e vigilante.
Foi nesse momento que a porta da sala se abriu de repente. Todos os olhares voltaram-se para o intruso, que caminhava com passos firmes e olhar inquieto até a frente da mesa. Era Theodorus.
– Imperatriz, perdoe a interrupção – começou ele, fazendo uma mesura rápida. O brilho urgente em seus olhos fez o coração de Xena acelerar ligeiramente – tenho um relatório sobre as masmorras que precisa de sua atenção.
Os conselheiros se entreolharam confusos, mas Xena estreitou os olhos. Ordenou que todos deixassem o salão, remarcando a continuidade da reunião para o dia seguinte. Quando todos saíram ela acenou para Theodorus, que desmanchou a postura formal e se aproximou dela pressuroso:
– Xena, ela aleijou mais um soldado. Já é o quinto. Me perdoe, senhora conquistadora, mas precisa decidir o que vai fazer com ela. Estamos perdendo homens apenas na tarefa de mantê-la na prisão.
Xena fechou os olhos com força e rosnou. Deu as costas a Theodorus, deixou-se cair na cadeira de espaldar alto e escondeu o rosto nas mãos. Diante de poucas pessoas ela permitia mostrar essa vulnerabilidade e Theodorus era uma delas.
– Eu sei que a coisa certa é executá-la. Eu sei – ela falou baixinho, quase para si mesma – porque simplesmente não faço isso?
– Por que sente culpa por Cirra – Theodorus sentou-se ao seu lado.
– Existiram mil Cirras em minha história – ela comentou.
– Mas apenas uma das vítimas quase conseguiu te matar. Apenas uma se tornou uma guerreira quase tão formidável quanto você.
Xena riu, sem humor.
– Obrigada pelo “quase” Theodorus. Você é generoso.
O homem ficou soturno e pensativo.
– E se a mandássemos para o extremo Oriente? Ou algum lugar tão distante que ela não pudesse voltar? – sugeriu o general.
– Ela voltaria. Ou mataria mil inocentes apenas para me irritar – Xena bateu na mesa, frustrada – maldição! Vou assinar a ordem de execução, Theodorus.
A imperatriz pegou um pergaminho e uma pena, e começou a rabiscar furiosamente. O general agarrou a sua mão.
– O que? – Xena o olhou com ódio.
– Talvez, Xena, não precise matá-la – Theodorus a encarou, sua voz tremia – existe um jeito de ela permanecer viva, mas incapaz de fazer mal a alguém.
– De que está falando homem? Vá direto ao ponto.
– A sacerdotisa de Mnemosine. Pode dar a ela uma poção que erradique totalmente as memórias dela. Ela poderá renascer, como uma nova mulher, e começar uma vida nova.
– A sacerdotisa não dará a poção a alguém que não a procure voluntariamente.
– Então convencemos Callisto. Lhe damos duas escolhas. Morrer ou esquecer.
– Ela escolherá morrer.
– Então que seja.
– De toda forma – Xena falou com amargura – eu, mais uma vez, matarei a alma dela. Certo, Theodorus. Fale com a sacerdotisa.
***
Xena desceu mais uma vez pelas escadas que levavam às masmorras. Trazia nos ombros um amontoado de correntes e algemas. O tilintar do aço se misturava ao murmúrio dos outros prisioneiros. O cheiro úmido e ferroso enchia o ar, e as tochas iluminavam fracamente o caminho estreito, lançando sombras contra as paredes.
Na última cela do corredor, Callisto a esperava, ainda atada ao seu trono de madeira. Xena cerrou a porta da cela atrás de si em silêncio. A loira a cumprimentou com o mesmo sorriso maníaco.
– Estava quase ficando louca de saudades, Xena – falou a loira.
– Percebi. Resolveu descontar isso nos guardas?
– Não tem muitas coisas que uma garota pode fazer para se divertir por aqui – a loira olhou as correntes que Xena trazia – finalmente criou coragem para cortar minha garganta? Vai fazer você mesma? Por favor Xena, se for me matar, faça você mesma.
Xena apenas balançou a cabeça e depositou as correntes e algemas no chão. Tirou um molho de chaves do bolso e se ajoelhou aos pés de Callisto.
– Agora – disse a morena – você vai ser uma boa garota ou vou precisar lhe conter fisicamente?
– Porque você não descobre? – Callisto respondeu com sua voz artificialmente doce.
Xena resmungou, e destrancou a algema que prendia o pé esquerdo de Callisto ao trono. Imediatamente a loira tentou lhe chutar, mas Xena segurou a perna com uma mão, enquanto com a outra, pegava uma das algemas que tinha colocado no chão e rapidamente a prendia no tornozelo da loira. Callisto gargalhou:
– Oh, Xena, você é tão boa!
A imperatriz fez o mesmo com o pé direito da mulher. Depois se ergueu, e soltou a algema que a prendia pelo pescoço. Callisto imediatamente girou a cabeça e gemeu de alívio com o movimento.
A conquistadora então soltou a mão esquerda de Callisto, que mais uma vez tentou lhe desferir um golpe, que a morena segurou com todas as suas forças. Com a mão livre, soltou a mão direita da prisoneira, que logo veio em direção ao seu rosto e a imperatriz segurou pelo punho.
Xena se afastou e puxou Callisto, que caiu do trono com um baque forte, e começou a rir ainda no chão. Começou a erguer-se lentamente, seus movimentos dificultados pela algema curta que prendia seus pés, mas antes que ela pudesse levantar-se, Xena montou sobre ela, prendendo-a no chão e algemando-lhe as mão nas costas.
A imperatriz saiu de cima de Callisto e virou-a bruscamente. Pegou mais uma algema e prendeu-a no pescoço da loira. Levantou-se e puxou-a pela corrente presa ao colar de ferro, fazendo a loira se levantar com um ganido de dor.
– Vamos sair daqui – rosnou a imperatriz.
Os soldados e os outros prisioneiros não fizeram um som enquanto Xena arrastava uma sorridente Callisto para fora da masmorra.
***
A imperatriz empurrou a mulher dentro da enorme cela de pedra. Callisto olhou ao redor, sorrindo.
– O lar de Alti – murmurou a loira – onde ela está?
– No estômago de vermes – respondeu Xena.
O rosto de Callisto ficou sério. Xena olhou para ela e sorriu.
– Finalmente algo que te pegou, hein?
– Bem – Callisto deu de ombros – não lhe conheci tomando decisões estúpidas.
– Agora, você tem uma escolha – a imperatriz a encarou com um olhar gélido – eu gostaria de te deixar aqui sem essas correntes. Mas para isso acontecer você, realmente… realmente… terá que ser uma boa garota. E não se mover enquanto eu lhe solto.
Callisto fez uma cara de quem pensava profundamente. Depois ergueu o queixo e sorriu, assentindo com a cabeça de maneira infantil.
Lenta e atentamente, Xena se abaixou e soltou as algemas dos pés de Callisto, que permaneceu inerte. Fez o mesmo com os demais grilhões. A loira se esticou e deu dois passos para trás.
– Estou feliz que você me trouxe para perto de você – Callisto olhava ao redor – quanto tempo isso vai durar Xena?
– Muito em breve você saberá seu destino – murmurou a imperatriz, saindo da cela e trancando Callisto. Não conseguiu se segurar e baixou os olhos dando um suspiro. Quando ergueu o olhar, Callisto a observava com um olhar curioso.
– Me perdoe, Callisto.
A loira ergueu uma sobrancelha.
– Pelo que?
Xena pausou um momento, depois falou, com uma voz entrecortada.
– Tudo.
Callisto ficou séria como a própria morte. Recuou e deu as costas para Xena, caminhando em passos lentos. Ergueu os olhos, parecendo olhar para o vazio e murmurou para as paredes.
– Eu era um nada. Você me deu um propósito. Não tenho o que perdoar – ela continuou caminhando lentamente pelo chão de pedra, com ar de quem falava sozinha – eu seria só mais uma camponesa destinada a uma vida idílica, se você não tivesse assado minha família – ela riu – quem sabe. Será que eu me casaria? Teria filhos? Netos? – a voz dela foi abaixando de volume, tornando-se quase inaudível – quem sabe um cachorrinho de estimação.
Xena cerrou os dentes. Deixou a masmorra num átimo.
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