Monstro
por DietrichXena girou o pesado molho de chaves mais algumas vezes, antes de abrir o alçapão que levava àquela masmorra única. Desceu as úmidas escadas de pedra lentamente, suas botas chapinhando no solo insalubre. Acendeu as tochas que ali havia e contemplou o amontoado encolhido atrás das grades que era Callisto.
Xena se aproximou da porta da cela e a observou por um instante em silêncio, as feições imóveis. Depois de um momento, inspirou profundamente.
– Callisto – começou, sua voz controlada, quase formal – trouxe uma escolha para você.
Callisto ergueu a cabeça lentamente. Seu rosto trazia uma expressão que beirava a inocência infantil. Xena conhecia bem aquele olhar, e aquilo a enervava.
– Uma escolha? – a loira murmurou baixinho – que generoso, Xena.
– Você sabe o que fez – continuou Xena, o tom de voz um pouco mais duro, mas ainda controlado – e sabe o quanto de sangue já foi derramado entre nós – Xena fechou os olhos brevemente, depois continuou a falar – eu lhe ofereço uma poção de Mnemosine. Essa poção apagará sua memória inteira. Esqueceria a dor, o ódio e… quem eu sou. Te daria a chance de recomeçar. Essa é uma opção. A outra… é a morte. Se rejeitar o esquecimento, é o que restará para você.
Callisto arregalou os olhos e seu queixo caiu. Começou a rir baixinho, e a gargalhada foi aumentando de volume até ressoar por toda a masmorra, gerando ecos dissonantes que tornavam o som macabro. Ela jogou a cabeça para trás, enquanto seu corpo sacudia de forma descontrolada. Quando enfim se acalmou, os olhos dela estavam marejados de lágrimas.
– Você está brincando comigo, Xena? Esquecimento? Uma poção mágica? – Callisto estreitou os olhos, e sua voz baixou para um sussurro afiado – oh, deuses. Não imaginava que a sua covardia tinha se tornado tão imensa.
– Chame como quiser – respondeu a soberana, e se amaldiçoou ao perceber o tremor em sua voz – estou lhe dando uma saída. Esta é sua última chance de escapar de si mesma. Não viverá mais o inferno onde se meteu.
Callisto se levantou finalmente, agarrou as barras de ferro da porta da cela, e colocou o rosto entre elas.
– O inferno onde eu me meti? Ah, Xena, você é o inferno. E eu nunca… NUNCA vou esquecer o que você fez. Esqueça você! – os olhos de Callisto estavam cheios de um ódio profundo, e sua voz se elevou num tom histérico – como você se atreve a pensar que tem o direito de me oferecer o esquecimento? Só porque você não consegue controlar o que você mesma criou? Vá se foder!
Xena sentiu as palavras como uma lança em seu peito. Callisto se afastou e recuou, um sorriso amargurado em seu rosto.
– Eu escolho morrer, Xena – Callisto falou – e como condenada, eu faço um último pedido – a loira se recostou na parede de pedra – me mate com suas próprias mãos. Deixe eu ver, nos meus últimos segundos de vida, que ainda existe alguma honra em você.
Xena quase não percebeu os próprios movimentos. Abriu a cela com força, a porta de metal ricocheteou com estrondo. Avançou em passos largos e rápidos na direção da loira e golpeou o pescoço dela com as pontas dos dedos, nos pontos precisos.
Callisto imediatamente começou a arquejar e cambaleou. Xena a segurou para que não caísse. O sangue escorria do nariz da loira e manchava seus lábios.
– Se eu tivesse.. apenas 30 segundos de vida – arquejou Callisto – é assim que queria vivê-los… olhando nos seus olhos.
Xena segurou a mulher com força, apesar do tremor intenso em seus braços. Não desviou um segundo seu olhar dos olhos castanhos, que começaram a se fechar lentamente.
– Não tinha que ser assim – murmurou a morena – não precisava ser assim.
– Não podia ser de outro jeito – Callisto ergueu a mão para tocar o rosto de Xena, mas seu braço caiu antes que o alcançasse e seu corpo pesou nos braços da imperatriz.
Xena apertou o corpo inerte contra si e deixou as lágrimas escorrerem.
***
Xena saiu da masmorra com passos trêmulos, mas a expressão em seu rosto era de pedra. O molho de chaves tilintava enquanto ela caminhava em direção ao saguão principal. Lá, Theodorus aguardava, atento, e ao ver a soberana se aproximando, ele se endireitou imediatamente, mas seu olhar buscava sinais do que poderia ter ocorrido.
Xena parou diante dele, a postura ereta, e seus olhos não demonstravam nada além de uma frieza implacável.
– Está feito – disse ela, a voz baixa e sem emoção, estendendo as chaves para Theodorus.
Theodorus pegou as chaves e baixou a cabeça em silêncio, absorvendo a gravidade do que aquelas palavras significavam. Ele sabia o que aquilo exigira de Xena, mesmo que ela não mostrasse, mas não conseguia não sentir um alívio.
– Quero que você e Vidalus providenciem um funeral apropriado para Callisto – continuou Xena, sua voz cortante – e não me contem onde a enterrarem. Mas o façam com dignidade. Me prometa, Theodorus.
– Eu prometo, minha senhora – disse o militar, pegando as chaves que nunca tinham sido tocadas por ninguém além de Xena.
O homem estendeu um braço para tocar o ombro de Xena num gesto de conforto, mas a mulher afastou o braço dele com um golpe, Theodorus suspirou, fez uma reverência, e saiu para cumprir seus deveres.
Xena o observou se afastar por um instante, sem expressão, como se avaliasse sua própria ordem. E então, sem mais uma palavra, virou-se e desapareceu novamente pelos corredores.
***
Gabrielle dobrava cuidadosamente suas roupas de trabalho, já aconchegada no conforto de sua camisola de tecido leve. Apesar das turbulências do dia, sua alma tinha voltado à calma anterior. Sorriu ao pensar em Terreis.
Um barulho diferente foi captado por seus ouvidos. Algo na biblioteca. Intrigada, pegou uma lamparina e saiu dos seus aposentos. Estava tudo escuro como breu, réstias ínfimas de uma lua minguante entravam pelas frestas das janelas fechadas.
– Oi? – perguntou para um aparente nada.
Um vulto cambaleante se projetou em sua direção. Ela levou um susto enorme e quase deixou cair a lamparina, e o susto não foi aplacado quando reconheceu a intrusa.
– Xena? – murmurou Gabrielle – precisa de algo?
– Algo? – Gabrielle percebeu pelo tom pastoso na voz da morena que ela estava bastante embriagada – eu não preciso de nada. Eu não preciso de porra nenhuma.
Gabrielle percebeu que a mulher trazia uma garrafa na mão, provavelmente do que ela estava bebendo. Como que em resposta a seus pensamentos a morena levou a garrafa a boca e sorveu um longo gole, o líquido escorrendo pela boca dela e manchando a blusa branca amassada que ela trajava.
– Eu só preciso disso – a morena falou, a voz ainda mais arrastada, levantando a garrafa – isso é tudo que preciso.
– Xena – Gabrielle se aproximou, hesitante. Depositou a lamparina com sua chama frágil acima do balcão – será que não já bebeu o suficiente?
– Quem é você para me dizer o quanto eu bebi?
– Eu não sou ninguém – Gabrielle deu uma leve recuada – apenas queria ajudar.
– Que ajuda você pode me dar? Me diga, Gabrielle, que ajuda?
– Não tenho ideia, senhora. Você veio aqui, então presumo que quer algo.
– Talvez eu queira simplesmente encher a porra da minha cara na biblioteca. Afinal, a merda do castelo é meu e eu faço o que eu quiser, onde eu quiser.
– Sim, você tem todo o direito – Gabrielle hesitou – aconteceu algo?
– Eu disse que ia te informar, certo? – Xena continuou – eu matei Callisto, Gabrielle. Está morta. Você pode dormir em paz.
– Oh, deuses – Gabrielle se aproximou – eu sinto muito, Xena.
Xena riu, e pousou a garrafa no balcão.
– Sente muito? Não está feliz que ela morreu?
– Estou triste por você. Callisto… eu não vou mentir… morta, sem memória – Gabrielle deu de ombros – eu queria que ela nunca tivesse nascido.
Xena deu um sorriso que mais parecia um esgar, e cambaleou para trás, esbarrando numa cadeira e perdendo o equilíbrio. Gabrielle se adiantou rapidamente e a segurou, impedindo que a imperatriz se estabanasse no chão.
– Quer saber, Gabrielle – Xena balbuciou – você já sabe coisas suficientes sobre mim para me chantagear, subornar, ou algo do tipo. Talvez eu devesse matar você também.
Gabrielle engoliu em seco e dessa vez não conseguiu evitar que uma contração de medo aparecesse em seu peito. Instintivamente, afastou-se de Xena, que se apoiou no balcão para não cair.
– Ah, finalmente vejo você com medo – Xena riu – sabia que veria isso algum dia.
– Senhora – Gabrielle tentou não gaguejar – necessita de ajuda para voltar a seus aposentos?
– Mas a princesinha ficaria chateada – Xena parecia não ter ouvido Gabrielle – se a princesinha achar que fiz algo com você, talvez meu pacto com as amazonas ficasse prejudicado. Você acabou se tornando importante, Gabrielle. Como conseguiu isso? É parte da profecia de Alti?
– Senhora, não entendo o que está falando…
– Estou falando da porra da sua namoradinha amazona, é disso que estou falando! – Xena gritou, o rosto furioso que depois se contorceu num riso – então o beijo que eu você trocamos abriu seus horizontes, ein?
– Xena – Gabrielle estava trêmula de medo, mas uma raiva começou a dominar seu peito – você está desvairada e está me faltando com o respeito. Exijo que…
– Exige??? – Xena avançou de forma veloz, mesmo em seu estado ébrio, e Gabrielle, instintivamente, pegou o abridor de cartas que estava sobre o balcão e ergueu diante de si.
Xena arregalou os olhos.
– Que porra é essa? – a morena rosnou – quer deixar Rhea órfã?
– Fique longe de mim – exclamou Gabrielle, sem deixar de encarar Xena.
– Ou o que? – Xena começou a avançar, e Gabrielle recuava, seu medo crescendo a cada passo para trás. Seu corpo começou a tremer violentamente quando sentiu suas costas esbarrarem numa parede. Olhou para os lados, tentando ver se tinha para onde correr, mas nesse momento viu as mãos espalmadas da morena se colocarem a cada lado do seu corpo. Tentou sustentar a lâmina que tinha nas mãos, mas seu corpo tremeu tanto que a deixou cair. Lágrimas encheram seus olhos.
O rosto de Xena estava muito próximo do seu, e ela não via uma mulher ali, mas um monstro distorcido.
– Xena, por favor… – a voz de Gabrielle era um sussurro de súplica, as lágrimas desciam por seu rosto – por favor, não me machuque. Por favor.
O rosto disforme diante dela se contorceu em expressões que ela não sabia reconhecer. Gabrielle fechou os olhos e teve a sensação que sua vida tinha terminado. Pensou em Rhea, e fez uma prece aos deuses para que a protegessem.
Um barulho de deslocamento de ar a fez abrir os olhos. Xena tinha dado alguns passos para trás e a olhava com uma expressão de pura confusão. A morena virou-se lentamente e cambaleou até os portões da biblioteca, saindo logo em seguida.
Gabrielle desabou no chão, sob o peso do próprio pavor. Passou incontáveis minutos congelada. Quando finalmente recuperou os movimentos, correu para os próprios aposentos e trancou-se com veemência. Todo seu corpo tremia.