Monstro
por DietrichXena volteava sua pequena adaga nas mãos quando ouviu a batida na porta dos seus aposentos.
– Entre – falou.
Uma jovem de compridos cabelos loiros entrou, os olhos fixos no chão.
Xena observou a mulher. Estava claramente nervosa e assustada. Levantou-se e caminhou até ela.
– Qual o seu nome, escrava? – perguntou a rainha.
– Sofia, minha senhora.
– Olhe pra mim, Sofia.
A mulher ergueu os olhos. Eram grandes e castanhos.
– Entende por que está aqui, Sofia?
– Sim, minha senhora.
– Quantos anos tem?
– Vinte e dois.
Xena virou-se e caminhou pelo quarto. Encheu sua taça de vinho e bebeu toda de uma vez. Repetiu o gesto. Voltou-se e viu que a escrava a observava, receosa. Foi até a jovem e a beijou. Depois de um tempo, a soltou.
A escrava a olhava, confusa e meio ofegante.
– Vá embora, Sofia. E diga a Anteia que não mande mais ninguém.
– Minha senhora?
– Saia daqui! – gritou a rainha, atirando a taça no chão, que se despedaçou.
A mulher saiu correndo, apavorada. Xena sentou-se e apoiou os cotovelos nos joelhos, segurando o rosto nas mãos. Sentia-se como se as paredes do quarto se fechassem sobre ela e o oxigênio faltasse ao seu redor.
Preciso matar alguma coisa, pensou a rainha. Levantou-se e trocou o seu vestido fino por uma calça e uma camiseta. Colocou sua velha espada na cintura e saiu do castelo.
Começou a caminhar pelas ruas de Corinto. A cidade era grande e estava cheia de movimento e vida. Apesar do seu porte e aparência chamar a atenção de algumas pessoas, sem suas vestes reais e adornos as pessoas não a reconheciam.
Xena não sabia o que estava fazendo andando pela cidade, mas sabia que não suportava mais ficar no castelo, fosse em seus tediosos deveres reais, fosse sozinha com seus pensamentos. Cada vez mais delegava suas atividades para Ophelia, que as aceitava sem recuar.
Entrou num estábulo e começou a olhar os cavalos. Parou diante de um belo animal alaranjado que lembrava muito sua velha Argo e o comprou.
Saiu da cidade e disparou pela estrada. O animal respondia bem aos seus comandos, e ela se deixou levar pela sensação de liberdade por uns momentos. Mas, não demorou muito, começou a se preocupar em como as pessoas no castelo ficariam se ela demorasse a voltar, pois tinha saído num impulso, sem avisar ninguém.
Resignada, começou a voltar com o cavalo quando o animal deu um salto inesperado e quase a derrubou.
– Ei, rapaz! O que houve?
Xena desceu do cavalo e tentou verificar se tinha algo errado com ele. Percebeu que o animal quase tropeçara numa corda esticada no meio da estrada, amarrada em duas árvores. Ouviu os arbustos se mexerem.
Uma dúzia de rufiões saiu do bosque.
– Uma mulher não pode viajar sozinha em estradas tão perigosas – disse o maior deles.
Não é possível que eu esteja com tanta sorte.
– Assaltando pessoas na estrada que leva à Corinto – disse a rainha – devo admitir, você é corajoso.
– Você parece uma mulher durona – disse o homem – e essa sua espada parece valiosa. Mas, você é uma, e somos doze. Nos entregue tudo que tem, e quero dizer, tudo mesmo, que escapará com vida.
Xena tirou a espada da bainha. Os homens riram e um deles se aproximou, estendendo a mão para coletar a arma.
– Vamos, doçura, não nos dê trabalho – falou o homem.
Num gesto ágil, Xena cortou a mão dele. O sangue esguichou em sua camisa branca e o homem berrou, em choque.
– Matem-na! – gritou o chefe do bando.
Os homens avançaram, armas em punhos. Xena concentrou-se. Queria prolongar aquele momento. Em vez de enfiar a espada o mais rápido possível em todos, aproveitou para exercitar as habilidades de combate que nunca mais tivera como desfrutar. Esmerou-se em golpes, cambalhotas e movimentos com a espada, até que os homens estavam caídos, alguns mortos, outros desmaiados. Os que restaram, fugiram correndo. Pensou em ir atrás deles e matá-los, mas decidiu que já tivera o suficiente batalhando em legítima defesa.
Devo estar envelhecendo, pensou.
Cavalgou de volta ao castelo. Os homens no portão demoraram a reconhecê-la, mas, por fim, a deixaram entrar, assombrados em ver a rainha manchada de sangue. Assim que entrou no salão principal, viu Ophelia correr em sua direção.
– Perdeu a cabeça, Xena? – ralhou a mulher, furiosa, mas logo sua expressão mudou para preocupação ao ver o sangue nas roupas da rainha – está machucada?
– Não, mas alguns delinquentes na estrada de Corinto estão. Fui dar uma volta para espairecer e me atacaram. Temos que pensar em como está a segurança da capital.
– Dar uma volta? Está louca? Não pode simplesmente sair, sem nenhuma guarda.
– Sou a rainha dessa pocilga e posso fazer o que me dá na telha.
A regente não se deixou intimidar.
– É responsável por essa pocilga, Xena. Não pode sumir sem avisar a ninguém. Faça o que precisar para se distrair, mas não nos deixe no escuro.
– Argh! Não preciso de lições de como levar minha vida.
– Tem decretos que…
– Deixo com você – disse a rainha e voltou aos seus aposentos.
Após tomar um banho e trocar de roupa, sentou-se novamente na cadeira. Virou mais dois copos de vinho. A euforia que sentira ao brigar com os ladrões já tinha evaporado. Os pensamentos que a atormentavam estavam de volta.
Só conseguia pensar em Gabrielle.
Percebeu que estava perdida.
***
Gabrielle sentou-se à simples mesinha de madeira no pequeno quarto da estalagem. Desenrolou o mesmo pergaminho que desenrolava toda noite há dias. A folha vazia a contemplou novamente, e parecia rir das suas tentativas de se expressar.
Era raro as palavras lhe faltarem. Seja na fala, seja na escrita. Costumava ser capaz de escrever sobre qualquer coisa, ainda que fosse um simples evento cotidiano, um detalhe do seu dia. Agora, todas as vezes que abria o pergaminho só queria escrever sobre uma coisa, e se recusava a derramar aquelas palavras.
Talvez, pensou, talvez, se eu escrever, ela desapareça.
Olhou mais uma vez a superfície lisa do pergaminho. Lentamente, começou a rabiscar as palavras.
Lembro da garotinha de Potedia. Era uma menina sonhadora, feliz, às vezes um tanto quanto atrevida. Ela vivia uma vida simples. Seu coração era cheio de ideais bonitos. Amava o bem, odiava o mal. Ela era boa. Queria ajudar os outros, queria viver aventuras. Sabia que o mundo era muito maior que os limites de sua calorosa vila. Um dia, ela cresceu e fugiu de casa.
Queria transformar seus sonhos em ações. Tola, sem rumo, ela lançou-se no mundo, movida pelo calor da juventude. O mundo a levou, e, tão devagar que ela não notou, a névoa dos sonhos que nublavam seus olhos foi se dissipando, muito lentamente, muito lentamente.
A jovem se tornou rainha. Sempre que o tornado da realidade a arremessava, ela lembrava da garotinha, tentando não esquecer em que acreditava. Amar o bem, odiar o mal. Mas a garotinha ficava cada vez mais fraca, sua voz não passava de um eco difuso no meio do caos. O tornado da realidade girava forte demais.
A rainha amou. Descobriu que o amor era estranho, inusitado, diferente das histórias românticas que a garotinha adorava. Que podia surgir das formas mais surpreendentes. Mas era belo, quente, bonito, macio, valia a pena. A rainha girava, mas não era uma cínica. Amava o bem, odiava o mal. Amava as pessoas. A vida era sagrada.
A rainha matou. Uma, duas, várias vezes. Sua alma não era mais inteira. A voz da garotinha sumiu de uma vez. Os sonhos se mancharam de sangue, de morte, de traição. O tornado desapareceu, deixando apenas as ruínas. Mas a rainha amava, apesar de tudo. Percebeu que precisava do amor. Não tinha mais certeza do bem e do mal, mas tinha certeza do amor.
A rainha perdeu seu reino. Perdeu seu amor. Perdeu todas as coisas que a faziam ser ela. No lugar do amor entrou o ódio, a vergonha, a culpa, o desespero. Todos esses sentimentos desenhavam a figura do mal, a imagem do monstro que preenchera sua alma com veneno. O veneno corroeu, manchou, a derreteu por dentro, até ela perceber-se tão pequena, tão insignificante que era apenas uma pele vazia.
A casca oca lembrou-se que estava viva quando percebeu que o mundo ainda existia. Existiam outras pessoas, tão bonitas quanto as pessoas de seu reino perdido. Como a garotinha acreditava, o mundo era simplesmente grande demais. O amor, como sempre, era estranho, inusitado, e sempre valia a pena.
O monstro rachou na sua frente. O bem, o mal, o amor, o ódio, misturados numa tormenta desregrada. A tristeza e a dor escorriam das rachaduras em forma de violência. Era amargo demais, mas, ainda assim, ela enxergava, ela nunca tinha deixado de enxergar, a garotinha nunca tinha morrido completamente.
Ela entendeu então que não havia o bem e o mal, apenas o amor, sempre, sempre valendo a pena. As pessoas, todas, sem exceção, ainda eram bonitas. Eram ainda mais bonitas agora que ela via sem a névoa dos sonhos. Ela via todas as cores, inclusive as mais sombrias, todas se mesclando no festival da vida. A vida continuava sagrada. Sagrada até mesmo no ódio, na dor, no mal.
A barda conta histórias. O mundo se complica e se torna cada vez mais difícil de pôr em palavras. O mundo se confunde, quando ela percebe que pode amar o mal, que ela pode se conectar com a sombra de alguém. Que ela é, ao mesmo tempo, razão e impulso sedento, amor transcendente e ódio visceral, atração e repulsa, pessoa e animal.
Quando percebe que, na solidão da noite, ela não quer estar só. Ela quer misturar todas as coisas em uma só, quer desenhar com todos os sentimentos e cores a imagem de outra pessoa-animal.
O amor, finalmente, não era mais suficiente. Era pouco para o que ela sentia. A vida era apenas vida. Estranha e inusitada. Ela era só parte da vida. Esta, que é curta demais para se deixar de querer.
E ela queria.
Eu quero.
Eu quero você.
Gabrielle afastou a pena do pergaminho. Seu coração trotava no peito. Não era aquela a conclusão que intentava chegar.
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