O Mundo Inteiro
por DietrichXena analisava o mapa em sua mesa quando ouviu um farfalhar, e um lampejo de luz clareou sua tenda. Passos soaram atrás dela, abafados pela areia batida. A pressão de mãos quentes em seus ombros a fez fechar os olhos por um momento.
– Então é hoje, Xena? – havia ressentimento na voz grave.
– É hoje, Ares – a rainha voltou-se para fitar o deus da guerra, que afastou as mãos – é hoje que você se torna uma piada.
Ares deu alguns passos para trás e olhou Xena de cima a baixo.
– Xena, a Destruidora de Nações. Prestes a se tornar a senhora de toda a Grécia.
– Sem a ajuda de nenhuma divindade – completou a rainha.
Ares começou a dar voltas pela tenda. Ergueu os braços num gesto de derrota.
– Só me resta parabenizá-la. Disse que faria tudo sem mim. E fez. Estou impressionado.
– O que quer aqui Ares? – Xena começou a perder a paciência.
Ares parou na frente da rainha.
– Queria vê-la mais uma vez. Antes de deixá-la para sempre.
– Então finalmente me fará esse favor?
– Seu senso de humor sempre foi uma das minhas coisas favoritas sobre você – o deus riu – só tenho uma pergunta, Xena. Será a senhora do mundo inteiro. O que fará depois?
– Desfrutarei – a mulher deu de ombros.
– Ah. Desfrutar. – Ares se aproximou e deslizou os dedos pelos longos cabelos escuros da mulher. Ela golpeou a mão do deus.
– Outra coisa para a qual não preciso de você, Ares. O que estava falando sobre sumir pra sempre?
Ares deixou o braço cair e recuou. Num clarão, desapareceu.
Xena tinha voltado a contemplar o mapa quando Deimos, seu general, entrou em sua tenda e estendeu-lhe um pergaminho.
– A resposta da rainha das amazonas, minha senhora.
A conquistadora abriu o rolo e o leu. Um sorriso satisfeito surgiu em seu rosto.
– Minha senhora? – Deimos interrogou.
– Ela não se renderá – Xena depositou o pergaminho na mesa.
– Quais são suas ordens?
Xena pegou a espada que estava na mesa e passou o dedo pela lâmina reluzente. Fechou os olhos com uma expressão de contentamento.
– Mate-as.
O homem bateu continência e saiu.
***
Numa virada vertiginosa da espada, Gabrielle abriu a garganta de um dos soldados da conquistadora. No lugar do homem caído surgiram outros mais, avançando e avançando.
Havia tentado coordenar grupos de ataque, ganhar vantagem, mas logo viu que não adiantaria. A conquistadora mandava seu próprio exército para a morte como quem tinha homens de sobra para desperdiçar. A turba de soldados as engolfou, os corpos das mulheres começaram a despencar.
Bem na sua frente, Ephiny acabava de matar um soldado, apenas para ser cercada por outros três. Gabrielle correu para alcançá-la e pode ver que sua regente notara sua presença. Seus olhos se cruzaram. A mulher de cabelos cacheados lhe mandou um sorriso confiante, e no sorriso havia um adeus.
Gabrielle devolveu o sorriso, sentindo seu coração acalmar-se com a certeza do fim.
– Pela Nação Amazona! – gritou.
– Pela Nação Amazona! – ela escutou o grito de suas irmãs, esparso, mas vigoroso e destemido.
Até não restar mais nada.
***
– Senhora Conquistadora, essas são as que restaram – Deimos apontou para a linha de mulheres ajoelhadas e amarradas.
– Pensei que tinha dito para matarem todas – a rainha olhou para Prístimo, seu segundo-general, que engoliu em seco diante do tom crítico da rainha.
– Eu sei, Senhora Conquistadora – Prístimo deu um passo a frente – mas eu pensei que…
Xena ergueu a mão e o homem se calou.
– Eu sei as porcarias que pensa, seu idiota.
A rainha aproximou-se e observou as amazonas. Todas estavam de cabeça erguida e a olhavam com ódio. Exceto uma. A última da fila.
A conquistadora parou diante da mulher. O olhar calmo e altivo da loira não desviava um segundo do seu. Xena ergueu a espada e encostou a ponta da lâmina no pescoço da amazona.
– Você era a rainha delas, estou certa? Gabrielle de Potedia.
A mulher ajoelhada piscou, sua respiração não se alterou.
– Sim, eu sou – tinha uma voz grave de contralto.
Xena afastou a lâmina e riu. Ergueu o braço e desceu a mão com toda a força no rosto da mulher ajoelhada. As demais prisioneiras se agitaram.
– Sua nação está morta, loirinha – Xena falava como quem comenta o clima – você não é rainha de nada.
– Sim, ela é – exclamou outra amazona.
Xena voltou a sua atenção para a mulher que tinha se manifestado.
– Traga essa até aqui – ordenou, apontando para a outra mulher.
Um dos soldados ergueu a amazona, que se debatia, e a empurrou até a conquistadora. Xena observou as feições de Gabrielle perderem um pouco da calma anterior.
– Então ela – Xena apontou para Gabrielle – é sua rainha?
– Até a morte – disse a amazona.
– Eu esperava que você dissesse isso – a rainha fez um sinal para o soldado. Ele desembainhou a espada e enfiou nas costas da amazona, que caiu de bruços aos pés da conquistadora. Um lamento soou da fila de mulheres. Xena virou o corpo da mulher caída com um pé e olhou para o restante das amazonas.
– Ela é a rainha de vocês também? – questionou.
– Para sempre – disse a mulher de longos cabelos cacheados que estava ao lado da rainha amazona.
– Para sempre – repetiram as demais.
A rainha contemplou os semblantes decididos das prisioneiras. Orgulho amazona não era apenas uma expressão, pelo que via. Não conseguia decidir se aquelas mulheres eram admiráveis ou estúpidas. Deu de ombros e gesticulou para um soldado.
– Mate-as, uma por uma. Ela por último – apontou para Gabrielle com sua espada.
A lâmina do soldado atravessou a primeira amazona. Um de cada vez, os corpos foram tombando. Xena viu a rainha amazona ofegar e virar o rosto para o outro lado. Mas, quando o soldado chegou na mulher logo ao seu lado, a loira fitou a amazona e deixou escapar um lamento. Uma lágrima escorreu ao ver o cadáver desabar. O soldado ergueu a espada para finalizar seu trabalho, e Gabrielle fechou os olhos e deixou os ombros caírem.
– Pare! – gritou a conquistadora. O soldado guardou a espada. Gabrielle ergueu a cabeça e abriu os olhos, confusa.
Xena tirou sua adaga da cintura e se ajoelhou diante de Gabrielle. Encostou a arma na garganta da amazona.
– Quer se unir a suas irmãs, não é? – a conquistadora fez um pequeno corte no pescoço da mulher.
– Acabe logo com isso – a altivez retornava aos olhos da loira.
– Diga que quer morrer, loirinha – disse Xena num tom feroz, pressionando a adaga com mais força sobre a região pulsante. Um filete de sangue escorreu.
A rainha amazona fechou os olhos novamente, esperando pelo golpe final.
A conquistadora levantou e começou a afastar-se.
– Tragam-na conosco – Xena disse e ouviu o arquejo atrás dela.
– Não! – gritou Gabrielle – Não faça isso!
– Prístimo – Xena dirigiu-se ao outro oficial – fique aqui e coordene a reocupação dessas terras. Deixarei parte do exército com você.
O homem bateu continência e se afastou. Xena aproximou-se de Deimos e apertou o ombro do general. Começaram a caminhar juntos.
– Vamos voltar, meu velho. Está com saudades de um colchão?
– Não faz ideia, minha senhora – respondeu o homem grisalho. Prístimo passou apressado diante deles, dando ordens a pelotões de soldados – Prístimo vai ter sonhos molhados por noites com essa responsabilidade que deu a ele.
– Argh – a rainha fez uma careta – ele é um almofadinha de merda. E eu não precisava dessa imagem na minha cabeça.
– Ele é de berço nobre, mas tem talento.
– Assim você diz.
O homem mais velho sorriu ao olhar a rainha
– Percorreu um longo caminho, Xena.
– E você o viu quase todo.
– Sim. Desde que não passava de uma delinquente comum.
– Ei, não pode falar assim com sua rainha.
– Peço perdão – Deimos lançou um olhar em direção ao local de onde vinham os gritos de Gabrielle – o que vai fazer com a mulher? – perguntou o oficial.
– Ainda não sei – Xena coçou o queixo – vou precisar me distrair, agora que não temos mais o que fazer, não acha?
– Sabem o que dizem sobre amazonas. Não são fáceis de domar.
– Está apostando comigo, velho de merda?
– Jamais me atreveria – o homem parou de andar e olhou preocupado para a conquistadora – se tem alguém que pode fazer isso, é você. Apenas não me agrada a ideia.
– Você não gosta que eu me divirta – Xena olhou aborrecida para o homem.
Deimos balançou a cabeça, um sorriso contrariado em sua fisionomia.
– Temos ideias diferentes sobre diversão, senhora.
– Não passa de um velho entediante, Deimos.
– Me preocupa o que isso fará com você.
Xena deu tapinhas no ombro do homem.
– Não se preocupe comigo. Se preocupe com a loirinha.
***
Gabrielle debatia-se dentro da gaiola de metal. Tentou com todas as forças afrouxar as cordas que prendiam seus pulsos e tornozelos, mas o atrito rasgou sua pele enquanto os nós se estreitavam e comprimiam sua circulação.
Escrutinou a sua pequena cela, tentando encontrar uma falha, uma ponta que pudesse usar para se soltar, mas as grades que a rodeavam pareciam talhadas por Hefesto em pessoa.
Recostou-se, ofegante, nas grades do seu cárcere. O único movimento era o solavanco da carroça. As horas se arrastaram e sua mente começou a esvaziar. Uma sensação de irrealidade se apoderou dela. A luz do sol desaparecia. Um resquício de sanidade começou a falar dentro de sua cabeça, e essa voz lhe dizia que devia morrer na primeira oportunidade que surgisse.
Teriam que desamarrá-la em algum momento, pensou. Poderia, então, atacar o soldado e ele seria forçado a matá-la. Outra possibilidade era tomar uma espada e enfiar no próprio peito. Ou correr e atirar-se no primeiro precipício que encontrasse.
O sol nascia. Uma cacofonia de vozes surgiu para conversar com ela. Soavam como o conselho das amazonas nos dias que uma decisão controversa precisava ser tomada.
“Ela deve morrer” a voz de Piamma argumentava “eu avisei que ela enfraqueceria as amazonas.”
“Ela deve viver” era a voz de Ephiny “éramos fracas antes dela, agora somos fortes.”
“Não existimos mais.” Piamma bradava.
“Está errada. Ela ainda existe. E deve viver por todas nós.”
– Calem-se – sussurrou Gabrielle – calem-se.
O sol se punha. Seu corpo inteiro doía e seus lábios estavam rachados. As vozes iam e voltavam. Viu Ephiny fora da gaiola, estendendo a mão pra ela.
– Viva, Gabrielle – sua regente tocou seu rosto queimado pelo sol – viva, por todas nós.
– Tenho medo, Ephiny – Gabrielle mal podia manter os olhos abertos – ela vai me machucar. Tenho medo. Quero encontrar vocês. Quero ficar com você.
– Viva – repetiu a morta – na hora certa, nos veremos novamente.
A mulher de cabelos cacheados desapareceu.
– Ephiny, não. Não me deixe sozinha.
As vozes sumiram, e apenas a lembrança de Ephiny ficou.
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