Pathos
por DietrichAcordou com um solavanco da carroça. Demorou um segundo para absorver a realidade. Olhou ao redor, para a infinidade de pessoas a pé e as muitas carroças.
– Cadê Rhea?? – sobressaltou-se.
– Está com as crianças – o homem ao seu lado, que guiava a carroça, apontou.
Gabrielle olhou onde ele apontava e viu a filha três carroças adiante, brincando de bonecas com outras meninas. A filha ria.
– Incrível a capacidade das crianças de se adaptarem, né? – o homem comentou.
– Sim – Gabrielle relaxou um pouco, mas sem tirar os olhos da filha – desculpe, acabei adormecendo.
– Também pudera, com tudo que passou – o rapaz lhe lançou um olhar compreensivo e Gabrielle sorriu.
– Desculpa, você falou seu nome, mas eu acabei esquecendo – comentou Gabrielle.
– Joxer – o homem estendeu a mão.
– Gabrielle – a loira apertou a mão dele.
– Prazer, Gabrielle. E não se acanhe em descansar. Temos bastante chão até Corinto. Não se preocupe com Rhea. A imperatriz ordenou a todas as amas a prestarem atenção nela.
– Entendi – disse Gabrielle – você trabalha com a conquistadora?
– Sim.
– O que faz?
– Um pouco de tudo. Cozinha, estábulos. O que Xena.. digo, a Imperatriz mandar.
Gabrielle olhou para o homem, indagadora. Ele sorriu e balançou a cabeça.
– Olha, Gabrielle… sou só um servo comum. Mas consegui a confiança da conquistadora. Por isso às vezes a chamo de Xena. Não é nada demais. Várias pessoas a chamam assim. Ela não se importa muito com essas coisas. Mas na dúvida… na frente dos outros, chame-a formalmente.
– Entendo… acho.
– Você vai se acostumar, quando estiver trabalhando para ela. Já sabe o que vai fazer?
– Não tenho ideia – pela primeira vez Gabrielle parou para pensar nisso – não sei fazer nada.
– Bem, a conquistadora com certeza vai encontrar algum talento seu e colocar para uso. Ela é boa nisso.
– Você parece que a admira bastante.
O homem sorriu.
– Está vendo aquela pequena de cabelos castanhos e ondulados? Ao lado da tua menina.
Gabrielle viu uma menina que ria gostosamente junto com Rhea.
– É sua? – perguntou.
– Sim. Sophia – os olhos do homem brilharam ao falar da menina – a mãe dela morreu no parto.
– Deuses, eu sinto muito – disse Gabrielle, e seus olhos imediatamente encheram de lágrimas.
– Eu sei que sente – o homem deu um sorriso triste – Sophia ficou muito doente quando tinha dois aninhos. Achei que ia perder minha única filha. A conquistadora mandou o médico pessoal dela cuidar de Sophia e a minha menina ficou boa.
– Porque você acha que ela faz essas coisas?
– Bem, você conhece as histórias que contam dela, né? Olha… – o homem baixou a voz – eu não duvido dessas histórias porque já vi coisas… – ele engoliu em seco – mas acho que ela está tentando compensar os males que fez no passado.
– Aquela… mulher… – Gabrielle olhou ao redor para ver se alguém os escutava – a imperatriz falou… que a devia algo.
– Se refere a Callisto?
Gabrielle assentiu. Joxer pareceu ficar realmente desconfortável, mas continuou, em voz ainda mais baixa.
– Olha, eu não sei detalhes… Mas parece que ela era órfã… e Xena foi de algum modo responsável por isso. Isso há muitos, muitos anos atrás, quando ainda era uma senhora da guerra. Aí parece que a adotou ou algo assim. Na verdade, não dá para entender muito bem o tipo de relação que tinham. Sinceramente… algumas coisas eu prefiro nem saber, Gabrielle.
– Entendo… desculpe perguntar.
– Tudo bem. E… bem… Callisto… me gelava os ossos. Eu fazia de tudo para ficar longe dela.
Gabrielle ficou em silêncio. Distraiu-se vendo Rhea brincar. Uma hora a filha a notou e acenou para ela. Depois de um tempo, a menina desceu da carroça onde estava e subiu na da mãe. Sentou em seu colo e a abraçou.
– Mamãe, estou com saudade do papai.
– Eu também, meu amor – Gabrielle beijou o topo da cabeça da filha.
– Sophia me falou que a mãe dela foi onde o papai está. Será que eles estão conversando lá?
– Com certeza, princesa.
A menina suspirou e fechou os olhos. Disse com a voz já sonolenta.
– Vou dormir e ver o papai. Já volto.
Gabrielle olhou para Joxer e viu que ele também tinha os olhos marejados.
***
Tinha anoitecido e não tinham chegado a nenhuma vila ou cidade. Os servos prontamente se mobilizaram para montar os abrigos e Gabrielle se esmerou em ajudá-los como podia. Todos eram muito eficientes e logo Gabrielle viu surgir diante de seus olhos uma mini cidade, com a enorme tenda real no centro e várias pequenas barracas, cobertores, redes e diversas formas de abrigo ao redor.
Cinco mulheres eram responsáveis por cuidar das poucas crianças que viajavam com eles, e Gabrielle aos poucos foi se acostumando a não ver o tempo todo onde Rhea estava. Apesar dos pesares, a menina estava adorando a aventura e fazer novos amigos da sua idade. Era mais arredia em Potedia, onde muitas vezes as crianças espelhavam nela o tratamento frio que os pais por vezes dispensavam à Gabrielle.
Gabrielle viu-se numa roda de servos ao redor de uma fogueira, conversando animadamente enquanto preparavam assados.
– E ela disse.. ela disse… – Joxer chorava de rir – que o gato cagava dinares, e que ela tinha trocado ele por uma pepita de ouro de tolo e…
Gabrielle conseguiu por alguns momentos se distrair com as conversas, mas repentinamente sentiu-se abatida. Pediu licença e foi até onde estavam as mulheres responsáveis pelas crianças. Uma delas lhe disse que todas elas já estavam adormecidas dentro da tenda. Gabrielle pediu para olhar e a mulher assentiu.
Espiou dentro da barraca e lá estava Rhea, dormindo confortavelmente debaixo de felpudas peles. Sorriu e respirou aliviada. Tentando não chamar a atenção de ninguém embrenhou-se na floresta, buscando um pouco de paz e silêncio.
Foi cautelosa e devagar, e a cada passo olhava ao redor. Eram matas completamente desconhecidas. Um arrepio, não de medo, mas de excitação, a percorreu. A lua, que alguns dias atrás estava crescente, agora estava cheia.
Manteve-se na trilha, sempre observando com cuidado, enquanto os ruídos do burburinho do acampamento iam aos poucos silenciando. Encostou numa árvore e respirou fundo, fechando os olhos e apreciando o silêncio e os barulhos da noite.
Seu coração apertou quando lembrou o que tinha acontecido da última vez que fizera aquilo. Uma sequência de eventos que tinha virado sua existência de ponta cabeça. Contraiu-se, imaginando por um momento Callisto saindo das sombras e a atacando. Mas lembrou-se que a mulher estava presa e provavelmente naquele momento apodrecendo em alguma masmorra de Corinto. Que apodreça e morra, maldita.
Um barulho diferente nos galhos alertou seus sentidos. Abriu os olhos e manteve-se atenta. Esperou mais alguns minutos e não ouviu nada incomum. Está imaginando coisas, Gabrielle.
Dessa vez, ouviu o barulho indistinguível de passos. Gabrielle imediatamente começou a retornar pela trilha, com passadas largas, quando numa das curvas lá estava, novamente, ela.
Não conseguiu evitar que seus punhos cerrassem e seu rosto se contraísse. Simplesmente continuou a caminhar, fazendo menção de ultrapassá-la quando ouviu:
– Você me odeia, ou a si mesma?
Estancou.
– Preciso escolher? Tem ódio suficiente em meu coração. Por mim, por você, e por Callisto – hesitou – principalmente por mim – falou baixinho.
– Sei o que quer dizer.
– Por favor… – Gabrielle retomou o ato de se afastar.
– Eu não conheço muitas emoções – a imperatriz continuou a falar e Gabrielle parou novamente – mas o ódio, o conheço bem – Gabrielle se voltou para olhar a soberana, que continuou a falar – há muitos, muitos anos, perdi alguém e o ódio me dominou. Foi o começo de uma jornada de sangue que nunca acabou de verdade. Até hoje, mesmo quando não pela minha mão diretamente – a imperatriz sorriu tristemente – o ódio que lancei ao mundo continua fazendo vítimas.
– Não se preocupe. Não vou virar uma senhora da guerra assassina, Xena.
Por um milésimo de segundo passou pela mente de Gabrielle que ela talvez estivesse sendo insolente com a pessoa mais poderosa da Grécia, mas descobriu logo depois que não se importava uma grama.
– Ainda bem. O mundo já teve o bastante dessas – respondeu a morena.
– Bem, eu realmente sinto muito por você.
Xena fechou os olhos e suspirou de cansaço. Não sabia porque a pequena camponesa a afetava tanto. Sentia-se culpada pela fatalidade sim, mas era uma entre muitas. Talvez o atrevimento da mulher em lhe disparar verdades fosse o que havia de diferente. O quão patético devia ser presenciar a soberana da Grécia sentir pena de si mesma?
– Gabrielle, sabe ler e escrever?
Mais uma vez, Gabrielle sentiu-se transportada a um mundo paralelo.
– Sei – respondeu, confusa.
– Quão bem?
– Apenas… bem.
– Bem o suficiente para ser escrivã da biblioteca real?
Gabrielle arregalou os olhos.
– Como assim?
– Vou aposentar o velho Atrius. Não enxerga mais bem e tem errado nas transcrições. Basicamente teria que fazer a manutenção dos pergaminhos e eventualmente fazer cópias, manter registros atualizados. Tanto de documentos oficiais, como obras de filosofia, arte, teatro, ciências, enfim… todas essas coisas. Por vezes é enfadonho, mas terá tempo para ler e estudar, se é algo que lhe interessa.
Se é algo que me interessa?
Uma biblioteca cheia de pergaminhos sobre todas as coisas.
– Se não lhe interessa, temos outras opções. O que não falta naquela pocilga é trabalho. Tem também o…
– Me interessa – cortou Gabrielle – me interessa muito.
Xena sorriu.
– Ótimo. Um problema a menos.
Gabrielle ainda estava paralisada, sua mente lutava para processar todos os acontecimentos. Xena caminhou, parou ao lado dela e pôs a mão no seu ombro.
– Um conselho gratuito, Gabrielle. Essas não são as florestas de Potedia. Realmente não é seguro que ande só. Se quiser dar uma volta à noite, pede para alguém te acompanhar. Recomendo chamar o Joxer. É de confiança. Enfim, quem desejar. Mas tenha cuidado.
– Tudo bem – Gabrielle começou a voltar pela trilha, a cabeça fervendo. A imperatriz a seguiu.