Pesadelo
por DietrichNão é porque alguém está morto, que essa pessoa não pode acabar com sua vida.
Nos recônditos dos planos espirituais, a mente, a alma e os sentimentos são os grandes poderes. Não apenas os sentimentos puros, mas também os mais nefastos.
Quando uma alma tem poder suficiente, a morte é apenas o começo de sua jornada.
O lugar parecia uma planície desolada. O vento era intenso e doloroso, escaldante e carregado de partículas de poeira grandes o suficiente para ferir a pele. O chão parecia areia movediça, e se você parasse de andar, seria engolido por ela, condenado a uma eternidade de sepultamento consciente ou a vagar sem parar mesmo que seu corpo se despedaçasse de cansaço.
O espírito coberto de trapos, que de nada serviam para proteger do vento abrasivo, chegou até o local que queria. Parecia apenas mais um pedaço da infinita extensão de terra pútrida, mas para ela tinha significado. Ela parou e seus pés logo começaram a afundar.
Ajoelhou-se, murmurou palavras que soavam como a voz da própria morte e enfiou o braço profundamente na terra. Com um grito que rasgou o silêncio como uma lança, arrancou de dentro da terra um corpo coberto de feridas.
O espírito resgatado gritou como um bebê que nasce de um parto peçonhento. Debateu-se no chão, a terra viscosa ameaçando enterrar-lhe novamente, quando a outra pessoa agarrou-a pelos cabelos e a pôs de pé.
– Callisto – murmurou o primeiro espírito – imaginei que você acabaria se entregando à terra.
– Me deixe em paz, Alti – Callisto retrucou, se o corpo ressecado fosse capaz de lágrimas, elas estariam em seus olhos – me devolva à terra. Não aguento mais andar…
– Não, não, não – disse a xamã, retomando sua perambulação pela terra dos mortos, puxando Callisto com ela – preciso de você. Preciso do seu ódio para executar minha vingança.
– Vingança? – murmurou Callisto, com voz quebrada.
– Eu e você… vamos fazer Xena desejar nunca termos nascido.
Um sorriso maníaco surgiu no rosto de Callisto.
– Podemos fazer isso? Daqui?
– Os meus poderes, junto com seu ódio… nos torna indomáveis… mesmo mortas – Alti puxou Callisto com violência, ficando de frente a ela – mas você precisará caminhar mais um pouco.
Com uma careta de dor, Callisto começou a andar novamente.
***
Gabrielle encontrou Terreis sob a copa de uma árvore antiga, onde a amazona observava o céu crepuscular em um raro momento de tranquilidade. Quando ouviu os passos leves de Gabrielle se aproximando, Terreis virou-se, seus olhos escurecendo ao perceber a hesitação nos olhos da outra mulher. Aquilo avisou ao seu coração que estava prestes a ouvir algo doloroso.
– Vejo que recebeu meu recado – comentou Gabrielle.
– Sim – a amazona retirou o pequeno pedaço de pergaminho de dentro da roupa – e pelo tom dele, já tenho alguma ideia do que está por vir – sua voz trazia um misto de ferida e conformação.
Gabrielle sentiu seu coração partir ao perceber a tristeza da amazona. Nutria por ela um carinho genuíno. E por isso mesmo, era incapaz de mentir para ela por um único segundo. Gabrielle respirou fundo, tentando encontrar as palavras que a fariam entender sem causar mais dor do que o necessário.
– Eu realmente gosto de você… – começou Gabrielle.
Terreis lançou-lhe um olhar de impaciência quase brincalhona, como quem pedia que Gabrielle a poupasse de platitudes. Gabrielle deixou cair os ombros e balançou a cabeça. Depois ergueu a cabeça e olhou nos olhos da amazona com um olhar sincero e firme.
– Existe outra pessoa em meu coração – falou.
Terreis ficou em silêncio, analisando cada palavra e expressão de Gabrielle. Por fim, ergueu o queixo, como quem deseja mostrar dignidade apesar da vulnerabilidade.
– Você está falando dela, não é? – perguntou, sua voz quase um sussurro – da imperatriz.
Gabrielle assentiu, a culpa refletida em seus olhos.
– Sim. Xena – ela fechou os olhos, tentando processar o peso desse nome – ela mexe comigo de uma forma que não consigo explicar. Eu tentei lutar contra isso, mas não consigo. É como se tudo dentro de mim apontasse para ela.
Terreis desviou o olhar, seus lábios pressionados em uma linha tensa.
– E o que há entre nós? Isso foi só uma distração? Ou… – ela deixou a frase inacabada, o eco das palavras pairando entre elas.
Gabrielle segurou a mão de Terreis, um gesto de carinho que transmitia mais do que qualquer palavra.
– Não, jamais. Eu nunca poderia tratar você assim. O que aconteceu foi real, Terreis. Você me mostrou gentileza e um lado de mim mesma que eu não conhecia. Mas… – ela fez uma pausa, procurando fôlego. – eu não posso te oferecer o meu coração. Ele já pertence a alguém, mesmo que eu não entenda completamente o que isso significa.
Terreis observou Gabrielle, os olhos brumosos, mas cheios de compreensão.
– Eu percebi isso antes de você – murmurou – a forma como olha para ela, o jeito como se comporta ao falar dela… era só questão de tempo até você entender também.
Gabrielle baixou a cabeça, incapaz de sustentar o olhar de Terreis.
– Sinto muito. A última coisa que eu queria era te magoar.
Terreis apertou a mão de Gabrielle, com uma firmeza inesperada.
– Não me arrependo de nada. Mesmo que seja doloroso agora, ter conhecido você foi um presente. E eu desejo que você siga seu coração, ainda que isso a leve a ela.
Gabrielle suspirou, um misto de alívio e tristeza em seu rosto.
– Obrigada, Terreis. Eu não sei o que dizer…
Terreis a interrompeu, com um leve sorriso.
– Diga apenas que vai ser feliz – ela sorriu de maneira corajosa – e que, caso precise de uma amiga, sempre terá uma entre as amazonas.
Gabrielle sentiu as lágrimas formarem-se, mas segurou-as. Aproximou-se e a abraçou, permitindo-se transmitir, naquele abraço, todo o respeito e o carinho que sentia por Terreis.
Quando as duas se afastaram, Terreis lhe lançou um último olhar, cheio de um entendimento silencioso e uma força que Gabrielle sabia que nunca esqueceria.
***
Xena se viu em uma clareira banhada pela luz suave do entardecer, onde tudo ao redor parecia envolto em um calor reconfortante. Gabrielle estava ao seu lado, sorrindo com uma serenidade que fazia o coração de Xena acelerar. Elas estavam de mãos dadas, e Gabrielle a olhava como se nada mais no mundo importasse. A paz daquele momento era tão intensa que quase doía, uma felicidade que Xena nunca ousara imaginar merecer.
– Eu estou aqui, Xena – murmurou Gabrielle, a voz suave e gentil.
Xena puxou Gabrielle para mais perto, envolveu-a em seus braços, sentindo o calor do corpo dela contra o seu. Fechou os olhos, permitindo-se afundar na sensação de segurança e completude.
– Xena… por que está me machucando? – Gabrielle sussurrou, a voz embargada, e Xena percebeu que suas mãos seguravam Gabrielle com força demais, os dedos cravados nos ombros dela, deixando marcas profundas na pele, e filetes grossos de sangue escorreram, manchando suas mãos.
Xena tentou soltar Gabrielle, horrorizada, mas era como se suas mãos estivessem coladas à pele da outra, como garras. Ela gritou, desesperada, e, sem que pudesse impedir, suas mãos se moveram até o pescoço de Gabrielle, apertando-o. Gabrielle lutava para respirar, os olhos arregalados e cheios de pavor.
– Xena, por favor… não… – as palavras saíam em sussurros fracos, enquanto Gabrielle tentava em vão se desvencilhar.
O horror da própria ação a dominou, e Xena lutou contra o impulso que parecia vir de um lugar escuro dentro dela, mas era como se uma força desconhecida tivesse tomado controle de seu corpo. Ela tentou gritar, pedir perdão, mas suas mãos continuavam a apertar o pescoço de Gabrielle com força destrutiva. O corpo de Gabrielle começou a vacilar, os olhos se fechando, até que ela ficou completamente imóvel.
Xena soltou-a finalmente, observando o corpo sem vida cair aos seus pés. Ela caiu de joelhos, o grito de desespero ecoando pela clareira. O cenário ao redor se desfez, e ela estava agora em uma paisagem desolada, sozinha, com as mãos manchadas do sangue de Gabrielle.
Ela acordou, arfando, o coração batendo descompassado, e sentiu uma dor excruciante nas mãos e nos ombros. Levantou-se num ímpeto e se olhou no espelho. Notou marcas vermelhas na própria pele, exatamente nos mesmos lugares onde, em seu sonho, havia machucado Gabrielle.
Xena tocou os machucados, tentando acalmar a respiração. Já tinha ouvido falar que emoções e sentimentos podiam aparecer no corpo, mas aquilo parecia um exagero. Seu coração encheu-se de angústia e culpa ao lembrar do pesadelo. O medo de machucar Gabrielle a dominou novamente.
– Eu não vou machucá-la – disse a si mesma, sem convicção – eu jamais faria isso. Deuses, por favor, não permitam que eu a machuque.
***
A biblioteca estava mergulhada em um silêncio acolhedor, a escuridão da noite interrompida pelo brilho suave das velas iluminando as fileiras de pergaminhos nas estantes lotadas. Gabrielle estava sentada em uma das mesas, absorta na leitura d’A República de Platão, quando ouviu passos firmes e lentos se aproximando. Ela ergueu o olhar e encontrou Xena parada na entrada, envolta em um manto leve, que, mesmo na suavidade do ambiente, não conseguia esconder a expressão de cansaço que sombreava seu rosto.
– Não consegue dormir? – Gabrielle perguntou, pousando o pergaminho que lia e se levantando.
Xena balançou a cabeça, forçando um sorriso que não conseguiu dissipar completamente a angústia em seus olhos.
– Tive um pesadelo – disse ela, a voz baixa e hesitante.
Gabrielle aproximou-se dela, com a expressão suavizando-se em compaixão. Ela tocou de leve o braço de Xena, que parecia relutante em retribuir o gesto, como se carregasse um peso invisível. Gabrielle notou como a mão de Xena estava fria e, ao examinar seu rosto, viu o leve tremor nos lábios dela, um sinal que quase passaria despercebido, mas que ela, por conhecê-la tão bem, percebeu de imediato.
– Quer me contar sobre ele? – Gabrielle perguntou, mantendo a voz suave, convidativa, mas sem pressioná-la.
Xena abaixou o olhar, prendendo a respiração por um momento. Ela hesitou, como se não quisesse reviver o pesadelo em palavras. Quando finalmente encontrou a voz, foi com um tom sombrio e distante.
– Prefiro não contar – falou – me desculpe, atrapalhei sua leitura.
Gabrielle assentiu. Sabia que para Xena, partilhar a própria alma era algo difícil e estava disposta a ir devagar.
– Não, eu já estava encerrando. Já está muito tarde eu realmente deveria me esforçar para dormir um pouco mais cedo.
– Aí não seria você – Xena surpreendeu-se como simplesmente ouvir a voz de Gabrielle era um alento para sua alma torturada.
– Eu tenho uma ideia. Por que não dorme aqui hoje? – Gabrielle se aproximou timidamente e entrelaçou os dedos nos da soberana – quem sabe se tiver companhia os pesadelos se afastem.
Xena hesitou um momento, mas o olhar ansioso e convidativo de Gabrielle rompeu suas barreiras.
– Quer saber, Gabrielle? É uma ideia fantástica.