Precipício
por DietrichAs duas mulheres passaram longos minutos, de braços dados, contemplando o precipício, cada uma imersa em seus próprios pensamentos.
Após um tempo, a atenção de Gabrielle saiu da paisagem e se voltou para a mulher ao seu lado. Disfarçadamente, com sua visão periférica, começou a analisar cada detalhe.
A soberana era uma cabeça inteira mais alta que ela. Mais uma vez reparou nos olhos azuis da imperatriz, no rosto de linhas angulosas. Podia perceber que a mulher ainda tinha o corpo e a força de uma guerreira, o que indicava que mesmo após anos sendo governante, não tinha deixado de praticar a arte da guerra.
Perguntou-se o que era verdade e o que era mentira nas narrativas dos bardos. Tinha ouvido histórias tenebrosas e custava a crer que o rosto sereno e estoico da mulher ao seu lado realmente tinha praticado atos tão horrendos. Porém, refletiu, ninguém chegava onde aquela mulher tinha chegado sem uma história de sangue. Deu-se conta, repentinamente, do quão arriscada e imprudente era a situação onde se encontrava.
Mal sabia Gabrielle que Xena fazia a mesma inspeção, porém seus pensamentos eram menos filosóficos. Ela sabia que, apesar dos exageros dos bardos, havia sim, um mar de sangue em sua história e atos odientos diversos. Aquilo a satisfizera em parte da sua juventude, mas após um tempo, tornou-se pouco.
Tinha tentado, por um tempo, elevar o nível de brutalidade de suas ações, em busca de reviver as emoções que antes a motivaram. Porém, percebeu que aquilo a levaria a nada mais, nada menos, que autodestruição completa. Tinha escolhido recuar e buscar o poder por meio do código de honra de um guerreiro, e assim o fizera. Agora tinha tudo que queria.
Sua alma mais ponderada, porém, ainda retornava eventualmente aos tempos de sangue. Aos vícios antigos, aos desejos macabros. E, contemplando a pequena camponesa ao seu lado, lembrava-se de uma época onde seduzir jovens inocentes e indefesas era uma artimanha que praticava sem pudores ou restrições, sem se importar com o dano que deixava para trás.
Uma mulher entediada com a vida doméstica era uma presa fácil. A pequena loira ao seu lado fustigava aqueles instintos antigos. Os primeiros passos já tinha dado. Tinha se mostrado um pouco vulnerável, feito a mulher baixar a guarda. Compartilhando pequenas coisas, conseguira que a mulher se abrisse. Daí para dá-la o que provavelmente seria a experiência sexual mais interessante que teria em sua insignificante vida e devolvê-la ao que provavelmente era um marido sem muita criatividade, era um passo.
Sorriu internamente, descartando aquelas intenções. Apesar da tentação, tinha desenvolvido consciência suficiente para não se sentir completamente confortável com o ato. A pobre mulher provavelmente já deveria estar se desdobrando para lidar com o medo e Xena sentiu que já perturbara a camponesa o suficiente. Se bem que, pensou a imperatriz, mais uma vez inspecionando a mulher ao seu lado, ela realmente parece não ter muito medo de mim. Desde que a vi anos atrás… ela não parece intimidada. Será corajosa demais ou estúpida?
– Gabrielle.. obrigada pela companhia. Já está tarde e é prudente que retorne para sua casa. Irei acompanhá-la até a saída da floresta.
– Não precisa, Xena, eu conheço bem o caminho.
A imperatriz sorriu perante a naturalidade com que a mulher disse seu nome.
– Eu sei. Mas Callisto não é a única dos meus soldados que às vezes comete atos impulsivos. Faço questão de acompanhá-la.
– Bem, se faz questão… – começaram a voltar pela trilha – sabe, você não parece a pessoa que aparece nas histórias contadas por aí.
Xena balançou a cabeça.
– Não se iluda, Gabrielle. Os hábitos do meu passado não estão muito distantes das histórias de horror que hoje as mamães usam para assustar as crianças.
Gabrielle estremeceu.
– Mas são… passado?
– A maior parte sim. Primeiramente, já estou ficando velha – Xena sorriu – já não tenho energia para tantas peripécias.
Gabrielle deu um risinho.
– Velha? Não parece muito mais velha que eu.
– Me lisonjeia. É sincera ou está tentando cair nos favores da imperatriz?
– Não tenho o hábito de bajular ninguém, Xena. É apenas uma constatação.
– Você já visitou Corinto, Gabrielle?
– Nunca. Não conheço muito além dos arredores de Potedia.
– Olha… não precisa se conformar com a vida que tem só porque está casada e tem filhos. Você e sua família podem viajar. Tirar férias, digamos assim. Sair um pouco da rotina.
– É uma ideia interessante… mas difícil de executar. Não temos muitos recursos para viagens maiores de forma segura. Além do mais… Perdicas é muito apegado a Potedia. E está sempre trabalhando muito… Enfim, é complicado. Mas… quem sabe um dia, quando Rhea estiver mais crescida.
Oh deuses, pensou Xena, seria tão fácil apenas… Bem, Xena, você realmente se tornou uma velha entediante.
Chegaram à orla da floresta.
– Bem, creio que posso deixá-la aqui – disse Xena – espero que um dia possa viver… algumas aventuras, Gabrielle.
– Eu duvido – Gabrielle riu – mas obrigada – Gabrielle largou o braço da soberana, ficou de frente a ela e fez uma pequena mesura.
Com um sorriso maroto, Xena pôs uma mão no ombro de Gabrielle, inclinou-se e depositou um beijo na bochecha da mulher menor, deixando seus lábios roçarem o canto da boca da loira. Apenas para não perder o hábito, pensou, não preciso também bancar a hestiana. Deixou-se lá ficar por alguns segundos e já estava prestes a se afastar quando sentiu o rosto da mulher virar-se levemente e os lábios encostarem nos seus.
Oh, pensou, interessante. Curiosa para ver o que acontecia, a soberana não fez nenhum movimento. Até sentir a pressão tímida dos lábios nos seus. Sorriu e beijou-os suavemente.
Deixou aquele beijo leve e delicado estender-se por algum tempo. Depois, segurou com a ponta dos dedos o rosto da camponesa e aumentou um pouco a pressão. Sentiu a mulher abrir a boca e ousou um pouco mais. Percebeu a ponta de uma língua molhada roçar seus lábios e fez menção de capturá-la.
Ainda devagar, provou todo o sabor da boca da mulher e sentiu seu corpo começar a reagir. Porém, segurou-se, pois estava muito interessada em saber até onde a outra mulher iria com aquilo. Sentiu um arrepio quando a mão da loira pressionou sua nuca e aproximou-se mais dela.
Colocou uma mão na cintura da mulher e a puxou devagar contra si, encostando seus corpos. Aquilo fez seu corpo reagir ainda mais, e controlou-se para não apertá-la. Porém, o braço da loira a enlacou pela cintura e a apertou, e não conseguiu não fazer o mesmo. O beijo aumentou mais de intensidade e velocidade.
Na mente de Gabrielle, o que tinha começado como um turbilhão de pensamentos foi substituído por uma avalanche de sensações. Uma pequena parte de si, no fundo de sua mente, lhe gritava para parar aquilo imediatamente, mas era opaca perante o que seu corpo lhe pedia.
Um gemido lhe escapou quando sentiu a soberana encostar-lhe numa árvore e a mão dela descer e subir por seu pescoço, entre os seios e estômago. Nunca em sua vida imaginara que o toque de uma pessoa pudesse ter tamanho efeito em seus sentidos, ou mesmo que o beijo de alguém pudesse fazê-la tremer por inteiro. É como se seu corpo nunca tivesse sido real até aquele momento. Em completo abandono, apertou ainda mais a imperatriz contra si e dedicou-se a provar todas as áreas daquela boca.
Até que o barulho próximo de uma coruja fez sua consciência retornar.
Num impulso, interrompeu o beijo e desvencilhou-se da imperatriz. Observou-a de olhos arregalados e os olhos azuis cheios de puro desejo a encheram de pavor.
De si mesma.
Virou-se e correu até a própria casa.
Xena cruzou os braços e suspirou longamente, recostando-se na árvore enquanto observava a pequena mulher correr como quem fugia de Cerberus. Quando a mulher entrou na casa, não pode evitar de rir consigo mesma.
– Aiai… – murmurou – para uma camponesinha, você até que beija bem, Gabrielle.
***
Gabrielle sentou-se na cadeira que ficava ao lado da lareira e concentrou-se em controlar sua respiração. Seu coração estava a mil e não era apenas pela corrida que tinha acabado de dar.
Após alguns minutos, sentiu seu corpo finalmente se acalmar. Fechou os olhos e começou a esfregar o rosto e passar a mão nos cabelos.
– O que deu em você, sua maluca? – sussurrou baixinho.
Pareceu ouvir a voz dos bardos. Eu canto à Xena, a Destruidora, não apenas de nações, mas da virtude de jovens inocentes, que caem presas de…
Mas ela não fez nada, recriminou-se Gabrielle, você fez. E você é uma mulher, não uma jovem inocente.
– Certo, Gabrielle – falou baixinho consigo – não precisa entrar em pânico por causa de um impulso idiota. Foi só um impulso idiota. Só mais uma coisa que você vai fingir que nunca aconteceu. E a vida continua igual.
Estremeceu quando a lembrança do beijo e do toque da conquistadora a invadiu. Percebeu, envergonhada, que nunca tinha sentido nada nem remotamente parecido quando Perdicas a tocava.
Não que o homem fosse bruto ou egoísta. Pelo contrário. Era gentil e generoso na cama. Pelas raras vezes que tais assuntos surgiam nas rodas de mulheres, ela simplesmente supôs que a insatisfação era lugar comum entre as esposas. Algo a mais com que se habituar. Na verdade, considerava-se sortuda, levando em conta algumas das barbaridades que ouvia as mulheres contarem.
Perdicas não era insistente, nunca a forçara a nada. Ela que às vezes forçava um pouco a si mesma, receosa de nunca dar nada ao marido no campo sexual. E não é que nunca sentisse seu corpo reagir. Experimentara o prazer ao lado do marido.
Mas mesmo as melhores experiências ao lado dele pareciam uma sombra perto do que a conquistadora lhe causara com um simples beijo.
O que haveria de diferente? pensou. Algo na textura da boca da mulher, algo em seu cheiro, algo nas mãos dela.
Era tão diferente de um homem, pensou, envergonhada. Sentiu um nó apertar seu peito, um nó que remontava a algo antigo e esquecido que ela tinha enterrado no mais profundo de si.
Estava tão absorta que não notou que já não estava mais sozinha naquela sala.