Pródigo
por DietrichGabrielle caminhava o mais rápido possível pelos corredores do castelo, os braços lotados de pergaminhos. Mais uma vez, os conselheiros tinham aparecido com solicitações de última hora, e exigido sua presença na reunião. Apesar do nervosismo em atender a demanda, o que estava realmente fazendo seu coração disparar era o fato de que veria Xena pela primeira vez depois do beijo que tinham trocado.
Já fazia quase uma semana do ocorrido e a imperatriz parecia ter escolhido desaparecer novamente. Gabrielle tinha esperado encontrá-la nos treinos, mas nada. Embora não soubesse exatamente o que tinha para dizer, sentia que precisavam conversar.
Entrou mais uma vez no enorme salão de pedra. Dessa vez, todos apenas lançaram-lhe um olhar casual, sua entrada no local já não era novidade. Menon imediatamente a convocou:
– Gabrielle, ainda bem que você chegou. Os tratados estão prontos?
Gabrielle assentiu, tentando concentrar-se no trabalho quando todo seu ser queria simplesmente olhar para Xena:
– Estão aqui – disse, estendendo um dos rolos para Menon – a versão final com as correções que discutimos.
Menon pegou o pergaminho, e sua expressão se tornou mais séria.
– Ótimo. E o relatório sobre a segurança das fronteiras? A situação se tornou mais crítica e é importante que a imperatriz tenha todos os detalhes para discutir com a delegação dos centauros.
– Já está aqui também – Gabrielle estendeu mais um rolo ao homem.
– Perfeito – o homem pareceu hesitar um momento, como se uma ideia tivesse acabado de lhe ocorrer – Gabrielle, você tem demonstrado um bom desempenho nas suas tarefas. Sendo assim, creio que deve comparecer como convidada de honra da corte ao baile que recepcionará os centauros. O que acham? – o homem se dirigiu à mesa de conselheiros.
Murmúrios de concordância percorreram a mesa, mas Gabrielle pode ver pelo menos dois semblantes que pareciam não gostar da ideia. Ela entendia que para alguns uma pessoa de origem comum, como ela, não deveria frequentar de forma tão direta o círculo aristocrático. Voltou seus olhos para a imperatriz, percebendo-se subitamente muito nervosa com qual seria a opinião dela. Porém, Xena parecia alheia e uma palidez incomum cobria suas feições. Parecia levemente nauseada.
– Minha senhora? – Menon a chamou.
– Que? – Xena pareceu acordar de um estupor.
– Estava mencionando que devíamos ter Gabrielle como convidada de honra no baile de hoje. Como recompensa pelo excelente serviço que ela presta.
– Sim, sim. Claro – a soberana falou – mandarei ordens a Vidalus imediatamente.
– Ótimo – o conselheiro falou, e Gabrielle percebeu um tom preocupado na voz dele – bem, vamos prosseguir então.
A reunião continuou como da última vez que ela estivera ali, com os conselheiros pedindo que ela recuperasse os documentos que necessitavam e ela os atendendo. Apesar da concentração no trabalho, era nítido, não só para Gabrielle, que Xena estava muito mais distraída e alheia que o normal.
Num determinado momento, Adrasteia chegou a perguntar à imperatriz se ela estava se sentindo bem e a soberana deu uma resposta vaga sobre um possível resfriado, ordenando que a reunião prosseguisse.
Assim que a reunião acabou, Gabrielle tentou mais uma vez ficar para ver se conseguia falar com Xena sozinha, mas a imperatriz foi a primeira a sair, com passos velozes, como se tivesse a Medusa em seu encalço. Depois de um segundo de hesitação, Gabrielle decidiu ir atrás dela.
Seu caminhar apressado mal conseguia acompanhar as passadas da alta monarca. Tentando não derrubar os pergaminhos, conseguiu se aproximar ao ponto de segurar Xena pelo antebraço.
– Xena!
A morena se virou sacudindo o braço, como se tivesse sido atacada. Gabrielle recuou, receosa, mas percebeu o olhar de Xena suavizar.
– Desculpe, Gabrielle. Estava muito distraída.
– Eu percebi – Gabrielle voltou a se aproximar, com passos relutantes – esteve assim a reunião inteira.
– É – Xena continuava com aquele tom vago – muitas preocupações. Muitas coisas para resolver.
– Entendo. Deve estar terrivelmente ocupada. Desculpe importuná-la. Vou retornar a meus deveres – Gabrielle começou a se afastar, sentindo o coração ferido, quando ouviu uma voz baixa atrás de si.
– Gabrielle, espere um minuto.
Gabrielle virou-se e se assustou com o grau de exaustão que viu no rosto da soberana. Sua mágoa logo se transformou em preocupação.
– Não estou assim… – A imperatriz parecia lutar para formular as palavras – não estou assim por causa do que aconteceu – ela fechou os olhos e esfregou a testa – eu realmente estou tendo que lidar com umas questões muito… difíceis. Sinto muito, não posso falar muito mais do que isso. Não estou tentando… deuses.. – A última palavra foi um suspiro baixo, quase uma súplica – sumir nem nada. É só…
Era palpável a angústia da mulher e Gabrielle sentiu-se culpada por estar inquietando-a ainda mais com sua ansiedade juvenil sobre um beijo. Deu um suspiro lento e sorriu para Xena.
– Tudo bem. Eu entendo. Mesmo. Não posso nem imaginar o tanto de deveres que você carrega. Seja lá o que for… espero que tudo corra bem. Xena… – Gabrielle se aproximou, os olhos baixos – não se preocupe comigo. Mas… quando quiser e puder… gostaria de conversar com você. Mas sem pressa, certo? E se eu puder aliviar seu fardo de algum jeito… sei lá. Você sabe onde me encontrar.
– Eu sei – a soberana deu um sorriso fraco, mas genuíno – obrigada, Gabrielle.
Gabrielle sorriu mais uma vez e prosseguiu em seu caminho de volta à biblioteca. Xena ficou um tempo recostada à parede, vendo a mulher se afastar. O encontro, ainda que breve, tinha sido um pequeno bálsamo diante das dores que fora obrigada a carregar nos últimos dias. Perguntou-se o que Gabrielle pensaria dela se lhe contasse que o filho que ela tinha abandonado há dez anos estava prestes a entrar novamente em sua vida.
***
Gabrielle entrou no salão ao lado de Salmoneus, seu acompanhante improvisado para a ocasião. Ao cruzar as portas, seus olhos foram imediatamente capturados pela imponência do lugar, decorado com tapeçarias luxuosas e estátuas que projetavam a grandeza do império de Xena. Centenas de convidados circulavam pelo salão, mas a atenção de todos parecia voltada para um grupo que se destacava pelo porte e força: os centauros.
Xena estava lá, recebendo os convidados com a postura altiva de sempre. Gabrielle viu quando ela se aproximou de Kaleipus, o líder dos centauros. Eles se encararam por um momento, antes de se cumprimentarem com uma reverência formal e impessoal. As palavras que trocaram foram polidas e educadas, mas Gabrielle, observando à distância, podia perceber a tensão latente que pairava no ar entre os dois.
– Kaleipus, é uma honra recebê-lo em minha corte – Xena disse, a voz apenas um grau acima da pura frieza.
– Obrigado, Imperatriz. Estou aqui em nome do meu povo, buscando uma coexistência pacífica e justa – respondeu ele, em tom neutro.
Ao lado de Kaleipus, havia uma pequena legião de homens e meninos, provavelmente jovens guerreiros em formação. Gabrielle não pôde evitar olhar com curiosidade para eles, impressionada pela variedade de idades e semblantes que carregavam a mesma gravidade e orgulho.
Entre eles, um menino que parecia ter por volta de dez anos chamou sua atenção. Ele estava de pé ao lado de Kaleipus, os olhos fixos em Xena com uma intensidade que não condizia com sua idade. Xena o observou por um instante antes de dirigir-lhe um leve aceno.
– E este jovem deve ser seu filho – ela disse. Gabrielle pensou detectar um levíssimo falhar na voz da soberana.
O menino, no entanto, não devolveu o cumprimento. Ao contrário, seu olhar parecia sombrio, quase hostil. Gabrielle viu a expressão de Xena endurecer, e por um breve segundo ela teve a impressão de que a mulher estava segurando a respiração, lutando contra algo que queimava por dentro.
– Solan – Kaleipus interveio em um tom firme, pousando a mão no ombro do menino – seja cortês. Está diante da imperatriz de toda a Grécia.
Solan abaixou a cabeça, visivelmente contrariado, e fez uma pequena reverência, murmurando algo que mal era audível.
– Imperatriz – ele disse, sem entusiasmo.
Xena assentiu, seus olhos escurecendo. Ela manteve a postura rígida e digna, mas Gabrielle, observando de longe, captou os sinais sutis. O leve tremor nas mãos de Xena, os olhos que pareciam levemente marejados. Ela estava usando todas as suas forças para se manter controlada, mas sua expressão, que Gabrielle agora conhecia bem, revelava uma angústia silenciosa e profunda.
Gabrielle sentiu uma pontada de dor ao perceber o quanto essa interação a afetava. Era evidente que havia muito mais naquela troca de olhares e palavras frias do que qualquer um ali poderia compreender. Ela tentou capturar o olhar de Xena, como se quisesse transmitir algum tipo de conforto ou apoio silencioso, mas a imperatriz estava distante, completamente envolta em sua própria tormenta interna.
***
A festa seguia com toda a formalidade que se esperava de uma recepção de Estado. Entre danças e brindes, Gabrielle percebeu que Xena parecia ter sumido. Desvencilhou-se de Salmoneus, que discutia acaloradamante sobre negócios com um dos visitantes e deslizou com o máximo de furtividade que conseguiu pelo salão, seus olhos atentos buscando um sinal da imperatriz. Foi então que vislumbrou, num canto isolado, atrás de uma cortina, um relance das botas de Xena.
Hesitou antes de se aproximar. Para a imperatriz buscar um lugar tão isolado em uma festa formal, algo grave deveria estar acontecendo. Porém, não conseguia esquecer a tristeza que tinha visto nos olhos dela e queria tentar fazer alguma coisa. Qualquer coisa.
– Xena? – chamou baixinho.
Viu os dedos da mulher surgirem e puxarem levemente a cortina, revelando apenas seu rosto. Ela estava encostada na parede de pedra e tomava vinho direto de uma garrafa. Gabrielle, vendo o rosto ansioso da mulher, se arrependeu de seu impulso.
– Perdão – disse a loira – vou deixá-la.
– Gabrielle – Xena falou, sua voz quase um sussurro – venha.
Gabrielle se aproximou, receosa. Xena as escondeu atrás da cortina.
– Se alguém perguntar – a imperatriz falou – responda que estou doente, certo?
– Certo.
A soberana tomou um longo gole da garrafa. Aquele gesto fez Gabrielle sentir uma contração involuntária de medo. Lembrou-se da última vez que vira a imperatriz bêbada.
Xena pareceu notar seu gesto.
– Você está com medo – a morena falou baixinho, a voz pastosa – eu entendo, Gabrielle. Se quiser ir…
– Não – Gabrielle baixou os olhos – tive um reflexo, por um momento. Mas já passou – tomando coragem, Gabrielle estendeu a mão e entrelaçou os dedos no de Xena – não sei o que está passando. Mas estou com você.
Xena tomou mais um gole e se recostou na pedra.
– Gabrielle… consegue me tirar daqui sem que ninguém perceba?