Purificação
por DietrichA tenda de Yakut era um santuário de mistério e silêncio, onde o ar era perfumado com incensos de raízes e ervas que queimavam lentamente em tigelas de barro. À luz trêmula de velas, sombras oscilavam pelas paredes de tecido e couro.
Podia ver-se uma série de objetos ritualísticos dispostos com esmero: ossos entalhados, penas de águia e coruja, e pequenas figuras feitas de madeira. Sobre as paredes, talismãs pendiam, alguns com olhos pintados que pareciam observar quem entrava, e outros com tecidos coloridos, em padrões que evocavam a cultura amazona do norte. Ao fundo, um altar baixo, coberto com folhas secas e pedras preciosas, brilhava em tons verde-escuros e âmbar.
Gabrielle por um momento permitiu-se enlevar pela atmosfera surpreendente do local. Seu coração foi preenchido pela certeza que estava em contato com forças sagradas e ancestrais, e seus olhos se fecharam em um momento de reverência.
Yakut se movia pelo espaço com familiaridade e respeito. Ela acenou para Gabrielle, indicando um círculo de pedras, no centro da tenda. Ela sentou-se no meio dele, e guiou Gabrielle para que se sentasse na frente dela.
– Dê-me suas mãos – pediu Yakut, numa voz baixa e suave.
Sem conseguir conter o tremor, Gabrielle estendeu as mãos para Yakut. A xamã fechou os olhos com expressão concentrada.
– Gabrielle – a amazona falou – eu sei que não contou tudo à nossa rainha.
O coração de Gabrielle acelerou com força e seu coração encheu-se de receio.
– Aqui nesse espaço, não há lugar para segredos – Yakut prosseguiu com delicadeza, seus olhos ainda fechados – eu sei que a pessoa que você quer salvar é alguém que já causou profundas feridas nas amazonas do norte. Xena, a Destruidora de Nações.
Yakut finalmente abriu os olhos, encontrando a expressão envergonhada de Gabrielle.
– Achei que se eu falasse… vocês se negariam a ajudar – Gabrielle falou, com olhos baixos.
– E achou corretamente – falou Yakut – se você tivesse revelado à Cyane essa verdade, ela a expulsaria das nossas terras sem pensar duas vezes. Mas eu e Cyane lidamos com planos diferentes. Ela cuida da guerra do mundo físico, eu cuido das guerras da alma. E eu sei que Xena não é mais aquela que foi e que você – os olhos de Yakut pareceram atravessar a alma de Gabrielle – você é parte do destino que vai tornar Xena a líder formidável que ela nasceu para ser.
Yakut soltou uma das mãos de Gabrielle e pegou um graveto de madeira dura como pedra, entalhado com diversas inscrições. Apoiou a ponta do graveto no chão e formas e inscrições que Gabrielle não reconhecia começaram a se formar no chão.
– Alti envenenou a alma de Xena com a viscosidade do ódio e da vingança – falou Yakut, seu olhar olhando para um ponto vazio como se visse coisas que se manifestavam apenas aos seus olhos – ela não está sozinha nessa empreitada. Outro espírito, carregado de rancor e ódio, alimenta o veneno que impede Xena de cultivar o amor por você.
– Callisto? – o nome saiu da boca de Gabrielle sem que ela sequer pensasse e por um momento, a mulher sentiu que as forças que ali circulavam também estavam falando através dela.
– Sim – Yakut confirmou.
– Yakut – o tom de Gabrielle continha desespero – por favor, me diga, é possível derrotar essa maldição?
Yakut fechou mais uma vez os olhos, enquanto continuava traçando simbolos misteriosos na areia do chão. Seu cenho estava franzido em absoluta concentração. Finalmente, abriu os olhos mais uma vez.
– Você está destinada a derrotar Alti de uma vez por todas, Gabrielle – a amazona falou, com dúvida contida na voz – mas talvez não da forma que espere.
– Como assim?
– Suas armas são suas maiores virtudes – a xamã novamente segurou as duas mãos de Gabrielle – sua capacidade de amar, perdoar e enxergar o melhor em todas as pessoas, inclusive Xena, irão garantir sua vitória. Você precisa voltar a força desses sentimentos em direção à Alti e Callisto.
– Não estou entendendo – Gabrielle engoliu em seco – eu devo… amá-las e perdoá-las?
– Deverá viajar ao mundo espiritual, encontrar as almas de Alti e Callisto e curá-las.
– Isso é impossível. Callisto matou o pai da minha filha. Alti amaldiçoou meu amor. Como posso perdoá-las?
– Se não pode, seu amor está perdido – Yakut falou, com tom de voz definitivo.
– Não pode ser. Não pode ser! – Gabrielle desvencilhou-se de Yakut, ficou de pé e começou a andar pela tenda – deve haver uma outra maneira!
– Temo não haver – Yakut respondeu, sua voz transparecia genuína tristeza.
Gabrielle passou a mão pelos cabelos, esfregando o rosto com força, seus olhos fechados, as emoções conflitantes causando turbulência em seu coração.
– Como… como… – ela se voltou para encarar Yakut – como posso purificar minha alma ao ponto de perdoá-las?
Yakut deu um sorriso leve e gentil.
– Fico feliz que tenha perguntado – respondeu a amazona – existe um ritual de purificação que pode prepará-la para essa missão. Não é garantia de sucesso. Primeiro, você terá que passar por uma série de provas espirituais e só depois poderá confrontar as almas atormentadas das suas inimigas.
– Ensine-me – Gabrielle voltou a sentar-se, pressurosa, na frente de Yakut – ensine-me Yakut. Eu farei qualquer coisa.
– Qualquer coisa?
– Qualquer coisa.
Yakut assentiu lentamente e fez sinal para ambas se levantarem. A xamã pegou uma tigela de cerâmica cheia de ervas secas, uma pena de águia, e um cristal verde, que brilhou sob a luz das velas. Enquanto o fazia, explicava:
– Este ritual será um caminho perigoso, uma descida ao âmago de sua alma – explicou Yakut, suas palavras repletas de seriedade – eu não tenho como lhe dizer o que você verá ou enfrentará ao longo dele. Suas dores, até as que você esconde de si mesma, serão reveladas. E só então, se você superar esses desafios, estará pronta para adentrar o mundo espiritual.
Yakut entregou a tigela na mão de Gabrielle, que a recebeu, confusa.
– Está pronta?
– Não – respondeu Gabrielle – mas irei mesmo assim.
Yakut reconduziu Gabrielle novamente ao centro do círculo, onde sentaram de frente uma à outra.
– Segure bem esse recipiente Gabrielle. E siga atentamente minhas instruções.
Gabrielle assentiu. Yakut estalou os dedos e as ervas começaram a chamejar, liberando perfumes que Gabrielle jamais havia sentido.
– Aspire profundamente as essências da Terra, Gabrielle. Elas serão sua ligação com o mundo físico. Ouça apenas o som da minha voz.
Gabrielle puxou o ar, deixando aqueles odores invadirem seus pulmões. Teve a estranha sensação que seu nariz se alargava, que fogo corria por suas veias, sem, no entanto, queimá-la.
Yakut pegou a pena e com ela começou a traçar marcas invisíveis no corpo de Gabrielle. Enquanto o fazia, murmurava coisas numa língua antiga que sua mente racional não reconhecia, mas ela tinha a nítida sensação que sua alma conhecia aquelas palavras. Sentiu-se tonta, sentiu por um minuto que se dissociava de si mesma, e um sentimento de terror a assolou, mas os murmúrios de Yakut a traziam de volta
Num determinado momento, ela parou de sentir a ponta da pena e experimentou a pressão de algo muito duro em sua testa. Yakut segurava o cristal contra sua cabeça, ainda dizendo aqueles sons irreconhecíveis, mas agora eles assumiam o aspecto de um cântico, cujos ritmos e harmonias destoavam de tudo que existia na terra, contendo em si tanto um aspecto de sublime, como de horror.
Gabrielle sentiu sua consciência se esvair. A tenda, o chão em que estava sentada, a voz de Yakut, a tigela em suas mãos, tudo desapareceu. Assustada, abriu os olhos e percebeu que estava em sua casa em Potedia. O barulho de uma porta se abrindo a fez virar-se e ela reconheceu os passos pesados ressoando no chão de madeira.
Perdicas entrava na casa. Gabrielle não conteve o grito e as lágrimas e correu para abraçá-lo. O homem a abraçou de volta, mas sem entusiasmo. Gabrielle se afastou e falou, tocando o rosto dele:
– Eu achei que nunca mais ia ver você.
– E nunca mais me verá Gabrielle – a voz doce e familiar trazia um tom triste – porque você mentiu para mim, Gabrielle? Por que mentiu nossa vida inteira?
Gabrielle recuou, aquelas palavras feriam como fogo.
– Perd… – Gabrielle lamentou.
– Você dizia que me amava. E eu te amei, Gabrielle, eu te amei toda a minha vida, até o último dia. Eu morri tão jovem, e nunca soube a verdade – o homem olhou para o chão – eu não vou ver minha menina crescer.
– Perdicas – ela respondeu, com um nó na garganta – eu nunca quis enganar você. Mas eu também fui privada do direito de amar livremente, de ser quem realmente sou. E mesmo que eu não tenha sido a esposa que você merecia, nosso amor trouxe ao mundo alguém maravilhoso… nossa filha, Rhea. O verdadeiro você… o homem gentil que conheci, teria desejado a minha felicidade. Eu sei que sim.
Gabrielle voltou a se aproximar de Perdicas, e segurou as mãos grandes e calejadas do homem. Um rasgo de saudade se abriu em seu peito.
– Você sempre foi meu melhor amigo. Você aceitava meu jeito estranho, quando ninguém aceitava. Você escolheu a menina da aldeia que ninguém mais entendia. Eu não te amei como você merecia, mas te amei do jeito que eu era capaz. Eu sei que, onde você está, você me perdoa. E sei, que, onde você está, você está cuidando de Rhea.
O homem sorriu, olhando-a nos olhos e acariciou os cabelos longos de Gabrielle. Aproximou-se dela e deu-lhe um prolongado beijo na testa.
– Eu sempre vou amar você, Gabrielle. E eu sempre cuidarei de Rhea. E eu desejo de coração que você seja feliz. Seja feliz, por mim. Por nossa filha. Por você.
O homem deu dois passos para trás e se dissipou numa brisa suave.