Redenção
por DietrichGabrielle sentiu o despertar se espalhar vagarosamente por seu corpo. A primeira coisa que atingiu seus sentidos foi o cheiro diferente que havia no ar, assim como a textura dos lençóis. Aquilo reafirmava que o que tinha acontecido não tinha sido mais um sonho, mas, ainda assim, ela receava acordar e descobrir que a realidade era mais cruel que suas fantasias.
A sensação de um leve respirar contra seu ombro foi o que finalmente a fez abrir os olhos. Xena não só estava ao seu lado como estava muito perto dela. A cabeça repousava sobre um braço e os longos cabelos negros e desalinhados espalhavam-se por todos os lados.
Jamais a vira com o rosto tão relaxado e sentiu que aquilo era precioso. Ainda assim, a imponência de suas feições era inegável, assim como a beleza do rosto anguloso e da boca de linhas bem desenhadas. Mordeu o lábio ao lembrar o que aquela boca era capaz de fazê-la sentir.
Os chamados da realidade começavam a querer entrar em sua mente, mas ela não queria ouvi-los. Talvez precisasse conversar com Terreis, em algum momento teria que conversar com a própria Xena sobre o que aquilo significava para elas. Teria que conversar consigo mesma sobre a promessa que tinha rompido com a própria racionalidade. Mas, naquele momento, queria pensar apenas sobre como Xena era a mulher mais linda que já vira na vida.
Deslizou as costas dos dedos com infinita suavidade pelas maçãs do rosto da imperatriz e pela linha do seu maxilar. A soberana imediatamente abriu os olhos, parecendo confusa por um momento, depois os olhos azuis encontraram os seus, e mais uma vez, o que via lá era indecifrável.
Por não encontrar palavras, escolheu o silêncio, o olhar, e prosseguiu em seu carinho. Vagarosamente, o rosto da imperatriz relaxou e ela abriu um sorriso. Gabrielle também sorriu.
Xena pegou a mão que acariciava seu rosto e levou à boca, beijando suavemente os dedos. Aquele gesto simples e carinhoso encheu a alma de Gabrielle de um arrebatamento que roubou seu respirar, ao mesmo tempo que arrepiava os pelos do seu corpo.
– Você está com uma cara de quem está pensando muito – disse Xena, parando de beijar os dedos e passando a brincar com eles de forma despretensiosa.
– É porque estou – falou Gabrielle, sentindo um encantamento ao ver a forma com que Xena tocava sua mão.
– Um dinar por seus pensamentos?
– Eles são de graça – falou a loira – estava pensando que você é a pessoa mais bonita que já vi em toda minha vida.
E elogio pegou Xena de surpresa. Embora ela soubesse de seus dotes físicos, ninguém jamais tinha dito aquilo para ela daquela forma. Como se aquilo fosse uma verdade por si só, e não um meio para conseguir algo dela.
– Hummm – Xena fez um barulho que lembrava um ronronar – você acha mesmo isso?
– Acho.
– Dizem que Afrodite é a mais bela das mulheres – retrucou Xena.
– Bem, eu nunca vi Afrodite, então para mim, permanece sendo você.
Xena continuou a observar Gabrielle, um brilho suave em seu olhar, como se ainda processasse o elogio inesperado. Ela soltou uma risada baixa, quase inaudível, que fez Gabrielle sorrir também, sentindo-se ainda mais cativada por aquela mulher que, apesar de tudo, a fazia se sentir como se a vida se dividisse entre antes e depois de seu beijo.
– Sabe… – começou Xena, a voz envolta em um tom de confidência raro – acho que ninguém nunca me falou isso. Não dessa forma.
Gabrielle não escondeu a incredulidade em seu olhar.
– Você só pode estar brincando.
– Não estou – a imperatriz prosseguiu – quero dizer, já ouvi sim, muitas vezes. Mas sempre tem algo por trás. Algo que alguém quer de mim. Uma transação.
– E quem disse que não quero algo em troca?
Xena olhou para Gabrielle com olhos feridos e confusos.
– O que? – a voz da imperatriz pareceu quebrar-se.
Gabrielle, percebendo que sua brincadeira tinha sido levada a sério, apressou-se para corrigir-se. Aproximou-se lentamente, tentando transmitir confiança no olhar.
– Quero que me mostre seu coração – a loira continuou, tentando fazer a intensidade dos seus sentimentos aparecerem em suas palavras – suas dores, suas dúvidas, seus medos.
Xena baixou os olhos, seu corpo contraindo-se involuntariamente, como se tivesse recebido um ataque sutil. Um suspiro prolongado escapou de seus lábios.
– E se nem eu mesma souber o que são essas coisas? – perguntou num tom de fragilidade contida.
Gabrielle chegou ainda mais perto e abraçou a imperatriz. Timidamente, espalhou beijos suaves como pétalas de rosa pelo seu rosto, seu pescoço e ombros. Posicionou seu rosto de frente ao da soberana e beijou-lhe a ponta do nariz com brandura imensurável.
– Xena – sua voz era quase inaudível. Gabrielle percebeu que a conversa que receava teria que acontecer naquele momento, pois o que havia dentro dela gritava por clamar-se – o que eu sinto por você nunca senti por ninguém em toda minha vida.
Xena sentiu-se tremer ante o impacto daquelas palavras, que caíram sobre ela como o brilho inesperado de um raio na noite mais escura, iluminando cada sombra de sua alma com uma clareza que era tão bela quanto aterrorizante, e lutou para que seus olhos não se encherem de lágrimas.
– Eu sei de tudo que aconteceu entre nós – Gabrielle continuou – eu tentei ficar longe… mas eu simplesmente não consigo. Isso me assusta mais que tudo. Mas prefiro sentir esse medo do que passar mais um dia longe de você.
As palavras de Theodorus ressoaram em sua mente. Xena, você é uma mestra da guerra, mas não conhece palavras para falar de amor. Mas se tinha alguém por quem ela precisava tentar, ainda que saíssem apenas balbucios incoerentes, era Gabrielle.
– Gabrielle… eu desrespeitei os deuses a minha vida inteira. Se eles me ouvissem, eu me ajoelharia perante todos e imploraria que apagassem o mal que lhe causei. E suplicaria para que eu jamais dissesse uma palavra ou cometesse um ato que a ferisse novamente. Mas eles não me ouvirão, e eu sinto que fazer essa promessa para você seria uma mentira – a voz da imperatriz falhou – a melhor coisa que posso dizer é: você é a única pessoa na minha vida que me fez realmente desejar ser alguém diferente.
– Eu não quero que você seja diferente.
Xena a olhou estupefata.
– Não me entenda mal – Gabrielle continuou – você já me assustou muito e eu não… eu não quero passar por aquilo de novo – Gabrielle estremeceu – mas quem você é… – a loira beijou as mãos de Xena – essa mistura caótica de luz e escuridão… acho que isso desperta o melhor que há em você – roçou o rosto carinhosamente no da imperatriz – às vezes a balança vai mais para um lado.. para outro… mas tudo isso te constituiu. Te torna única. Te torna… – a voz de Gabrielle falhou – a pessoa por quem eu tenho coragem de arriscar tudo.
As palavras de Gabrielle pairaram no ar, preenchendo o espaço entre elas com uma espécie de silêncio sagrado. Xena permaneceu olhando para Gabrielle, o rosto carregado por uma expressão mista de afeição e um temor quase infantil, como se ainda temesse acreditar que algo tão puro pudesse ser destinado a ela.
– Gabrielle… – murmurou, a voz entrecortada, tomando a mão dela e levando-a aos próprios lábios. A cada beijo, Xena parecia lutar para se permitir aquela proximidade, como se ainda precisasse convencer a si mesma de que merecia estar ali – eu não sei onde isso vai nos levar… Mas, se você está disposta a arriscar tudo, então, mesmo que eu caia, que eu falhe… quero que você seja o último rosto que vejo, e a última pessoa a quem eu dê tudo de mim.
Gabrielle sentiu o peito arder e seus olhos se encheram de lágrimas silenciosas. Ela apenas assentiu, entrelaçando os dedos nos de Xena, como se o toque fosse uma promessa por si só. Sem mais palavras entregou-se a uma troca de olhares que parecia dizer tudo o que jamais poderiam expressar em palavras.
Ela se inclinou lentamente, as mãos acariciando os cabelos escuros de Xena enquanto seus lábios encontravam os da guerreira. O beijo foi lento, doce, sem pressa, mas intenso, como se ambas soubessem que estavam entregando partes de si que nunca haviam dado a ninguém.
Quando finalmente se afastaram, Gabrielle apoiou a cabeça no peito de Xena, ouvindo o batimento compassado do coração da imperatriz, e fechou os olhos, sentindo o calor que emanava daquele abraço e permitindo-se um momento de paz. Xena a envolveu em seus braços, segurando-a com uma delicadeza inesperada, como se ela fosse seu bem mais precioso.
– Talvez os deuses não nos ouçam – sussurrou Gabrielle, com os olhos fechados – mas isso não importa, Xena. Se os deuses não podem te redimir… eu também não quero redenção.
Xena fechou os olhos, permitindo que uma lágrima silenciosa escorresse, sem que Gabrielle visse. Virou o rosto rapidamente, enxugando a lágrima intrusa no lençol. Por um breve instante, tudo parecia perfeito, e ela decidiu que, mesmo que não acreditasse em redenção, queria acreditar naquele sentimento.
As duas ficaram ali, em um silêncio que era tudo, como se ambos os corações estivessem costurados por um fio invisível e eterno.