Sangue
por Dietrich– Não importa quantas vezes eu repasse tudo em minha mente… eu sinto o sangue dele em minhas mãos.
Terreis hesitou um segundo antes de envolver Gabrielle em um abraço. A loira o achou caloroso e confortável e entregou-se ao pranto nele. Fazia tempo que não derramava aquele choro.
– Sinto muito, Gabrielle – a voz de Terreis era um sussurro – sinto tanto.
Quando Gabrielle parou de chorar, Terreis afastou-se delicadamente e enxugou o rosto da loira.
– Gabrielle, você sabe porque as amazonas existem?
– An?
– O mundo foi forjado pelos homens. As regras que imperam, são as regras dos homens. Em tudo. Nas roupas que usamos, nas palavras que falamos. Nas casas que construímos, nas leis. Tudo tem a marca dos homens. Não porque assim deve ser. As amazonas não concordam com essas regras. Tentamos criar um mundo de regras diferentes, mas não conseguimos, então fomos ostracizadas e escolhemos um mundo à parte, mas nosso. Acreditamos na liberdade e na capacidade da mulher e de todas as pessoas. Todo seu sofrimento, não foi causado por você. Que mundo medonho é esse onde um beijo é razão para que se mate alguém? E nós que somos cruéis! Que sandice é essa onde você foi levada a sacrificar sua própria verdade por que alguém disse que o amor deve ser de uma determinada forma? Que o destino de uma mulher é servir um homem? A sua tragédia é culpa da primeira pessoa que tentou colocar o amor dentro de uma prisão.
– Eu sei, mas…
– Sabe mesmo? Você percebe que passou a vida inteira com metade de sua alma morta? E que num momento de vida, o mundo te puniu com sangue? E, tragédia das tragédias, você ainda acha que, de alguma forma, a culpa é sua. É o golpe final na sua alma.
– Como vou conseguir viver com isso?
– No fundo, eu sei que você sabe que nada disso é culpa sua. Eu vi em você. Não deixa o mundo dar o golpe final. Tua alma te pertence. Sua capacidade de amar te pertence. E agora que você encontrou novamente a si mesma, não deixa o mundo te matar novamente. Já houve morte o bastante.
– Eu não sou uma amazona – disse Gabrielle – eu vivo no mundo dos homens.
– Bem, toda mulher que vive no mundo dos homens tem que fazer o necessário para sobreviver. Mas você é inteligente. Vai saber como manejar esse mundo a seu favor sem perder sua alma novamente. Vingue-se sendo feliz. Radicalmente feliz e livre.
Gabrielle suspirou e o leve sorriso que curvou seus lábios surpreendeu ela mesma. Ela sempre tinha questionado as regras. Em que momento da sua vida as tinha aceitado e desistido? Ela não sabia dizer. Mas ela sabia que Terreis estava certa. As regras do mundo não eram absolutas e muito menos corretas.
– Você está certa – murmurou – você está certa.
– Bem, já que tiramos isso do caminho – Terreis fez menção de continuar a caminhar – me leve para seu lugar favorito em Corinto.
***
Não era o lugar mais espalhafatoso, nem de longe era o mais opulento. Parecia só mais uma casa de madeira, um pouco maior que as demais.
Podia-se dizer que era uma taverna, mas a disposição interna lembrava a de um anfiteatro. Ao redor do balcão onde eram servidas as bebidas e comidas havia arquibancadas de madeira com três degraus. Não havia mesas ou cadeiras.
No centro do espaço, uma peça de teatro acontecia. Uma performance particularmente ruidosa de Ifigênia.
Gabrielle já se sentia um pouco tonta e resolveu recusar a última rodada de cerveja, mas Terreis riu e tomou um longo gole da caneca que passou pela mão dela. O público reagia espalhafatosamente à peça, mas os atores não se importavam. Ali era um lugar onde as etiquetas eram rompidas e a arte corria livre.
Quando a peça acabou, Terreis e Gabrielle saíram da Gruta das Musas, e caminharam, meio cambaleantes, pelas ruas da cidade.
– Olha, Terreis – a voz de Gabrielle estava ligeiramente pastosa – nesse tempo em Corinto, eu tenho aprendido que tudo é um tipo de jogo. Você e as amazonas estão aqui para algum tipo de acordo político com Xena, e você querer dar uma volta comigo deve ser de algum jeito parte disso.
– Nossa, e eu estava prestes a te perguntar o que tinha achado da peça – a voz da amazona também estava meio arrastada – mas o assunto ficou sério de repente.
– Eu adorei a peça. Adoro a Gruta das Musas. Adoro o jeito caótico com que subvertem os clássicos.
– Seu espírito é naturalmente rebelde. Você seria uma ótima amazona.
– Estou em dúvidas se fui elogiada – riu Gabrielle – você gostou da peça?
– Achei fenomenal. Mas gostei principalmente da companhia.
– Você está me bajulando – Gabrielle falou, matreira – desculpa, acho que não tenho nenhuma informação política importante para passar. Meu trabalho é bem formal…
Terreis revirou os olhos.
– Ai Gabrielle… eu tenho um “jogo” sim, mas não tem nada de política – Terreis parou de andar e ficou de frente à loira – meu jogo é esse – a amazona se inclinou e pressionou os lábios nos de Gabrielle.
Gabrielle se assustou e recuou por impulso, olhando estupefata para a amazona. Imediatamente sentiu vergonha.
– De.. desculpa, Terreis. Fui pega de surpresa e….
– Tudo bem – a ruiva deu de ombros com um sorriso conformado – depois que você me contou sua história eu meio que tinha desistido mesmo. Mas ainda assim, achei uma noite bastante agradável. Vamos voltar ao castelo?
Gabrielle ainda estava meio sem voz, sua mente ébria tentando processar o que tinha acabado de acontecer. Fitou Terreis ainda meio estupefata. O sorriso calmo da mulher a observando virou alguma coisa em seu coração. Trêmula, se aproximou e beijou os lábios da amazona.
Por um momento, sentiu apenas confusão. Talvez, a mistura do álcool em seu corpo com uma multidão de sentimentos que não sabia nomear. Aos poucos, aquilo foi sendo apagado pela sensação dos lábios da outra mulher. Os braços da amazona envolveram sua cintura e a apertaram com suavidade.
Ainda tremendo, a loira enlaçou as mãos na nuca da outra mulher. Seu coração ansiava por mais, mas sua alma ainda estava preenchida de inquietação. Terreis parecia sentir, e prosseguia com suavidade. Gabrielle sentiu aquele aconchego e, sem perceber, começou a relaxar e a se entregar às sensações.
Mais uma vez, era como se o corpo que ela tinha negado se tornasse real. Era uma injeção de vida, de certeza. Mergulhou no perfume dos cabelos da mulher, na sensação daquele corpo ao mesmo tempo forte e suave, daqueles lábios macios e saborosos.
Voltou a tremer, mas não por suas inseguranças. Aquele desejo intenso, do qual tivera um vislumbre nos braços da imperatriz, começou a assolar seu corpo e sua imaginação correu solta. Sentiu Terreis morder suavemente seus lábios, e um gemido escapou do fundo de sua garganta.
Tudo que queria era se entregar por inteiro àquelas sensações, mas tudo ainda era novo demais. Devagar, e contra si mesma, interrompeu o beijo, mas não soltou a amazona. Encostou a testa na dela e deixou-se ficar ali um tempo, ofegante.
Afastou-se e imediatamente seus olhos foram ao chão, acanhados, mas ainda segurava a mão da amazona.
– Isso é… bastante coisa para eu entender – falou Gabrielle.
– Eu sei – murmurou Terreis.
– Podemos… podemos voltar para o castelo? Acho que realmente preciso me recolher e ficar um pouco sozinha com meus pensamentos.
– Claro. Já está bem tarde mesmo.
As duas começaram a fazer o caminho de volta.
***
Já dentro dos muros do castelo, Gabrielle virou-se para se despedir de Terreis.
– Obrigada pelo passeio e pela companhia, Gabrielle. Foi realmente maravilhoso.
– Eu que agradeço.
A loira se adiantou e beijou a bochecha da amazona. Pretendia despedir-se ali, mas a tentação foi mais forte. Deslizou os lábios e beijou-a novamente, dessa vez, com menos suavidade.
A ruiva respondeu à altura. Apertou o corpo de Gabrielle com ímpeto e beijou-a com ardor.
Oh, deuses, Gabrielle pensou, enquanto sentia seu corpo novamente vibrar com aquela forte luxúria que para ela era ainda uma desconhecida. Jamais imaginara que era possível sentir tanta fome de outra pessoa. De tocar e ser tocada.
O convite para amazona subir até seu quarto veio até a ponta de sua língua, mas não conseguiu sair. Em vez disso, mais uma vez, com a sensação de quase uma dor física, interrompeu o beijo e separou seus corpos.
– Eu… an… preciso ir e…. dormir… amanhã tenho que trabalhar e…
Terreis riu e deu um beijo rápido na bochecha de Gabrielle.
– Boa noite Gabrielle. Foi um prazer conhecer você.
– Boa noite – Gabrielle se viu sem saber o que dizer. Fez uma mesura desajeitada e entrou no castelo, meio desesperada para chegar em seus aposentos. Não percebeu que a amazona a observou até ela sumir de vista, um sorriso carinhoso nos lábios.
***
Gabrielle deitou-se na cama e deixou escapar um longo suspiro.
Sentia em seu corpo ainda toda a força das sensações que experimentara naquela noite. Porém, a vergonha e a culpa ainda a fustigavam, embora as palavras de Terreis sobre a injustiça de toda aquela situação a tivessem tocado.
Tentou não pensar em Perdicas, mas não conseguiu. A lembrança do rosto caloroso e gentil do marido a fez sorrir com tristeza.
Você era tão maravilhoso que eu tenho certeza que você estaria feliz por mim agora. Só posso te pedir perdão de novo, por ter roubado de você a oportunidade de ter sido realmente amado.
Deu mais um suspiro e percebeu que a vergonha e a culpa diminuíam. Ela fizera o melhor que era capaz nas circunstâncias dadas por um mundo injusto. Mais cruel ainda seria permanecer vivendo mentiras, agora que tinha encontrado alguma verdade sobre si.
Descanse em paz, Perd. Meu melhor amigo. Adeus.