Há quanto tempo não dava uma volta sozinha nas florestas de Potedia?, perguntou-se, enquanto o ar gelado da noite fustigava seu rosto. Provavelmente anos.

Conhecia aquela pequena selva como a palma de sua mão. Caminhou lentamente pelas trilhas familiares. A luz da lua crescente, quase cheia, atravessava os galhos e seus olhos logo se acostumaram à penumbra.

Quase todas as mulheres tinham medo de caminhar ali à noite. Ela jamais tivera. Talvez devesse ter medo, pensou. As outras mulheres sempre a trataram como se ela fosse uma espécie de aberração. Não podia dizer que realmente tinha amigas, além de Serafim e Lila. E, apesar de amar a irmã, a única coisa que tinha em comum com ela era o sangue. Serafim a entendia melhor, mas desde que a amiga se mudara para Atenas, sentia-se ainda mais deslocada.

Aos poucos o turbilhão de pensamentos foi sendo apaziguado pelo ar frio da noite e pela beleza da floresta noturna. Saiu um pouco da trilha e entrou numa parte mais densa. Permitiu-se fechar os olhos e ouvir os barulhos notívagos e seus lábios se curvaram num sorriso satisfeito. Preciso fazer mais isso, pensou. Já me acham doida mesmo. Vou pelo menos dar-lhes melhores motivos para me chamarem assim.

Sentiu o impacto abrupto de um corpo contra o seu e o grito que se formou em sua garganta foi abafado por uma mão pressionando sua boca, enquanto seus braços eram presos por um enlace poderoso que fez suas costelas doerem. Por instinto, tentou se desvencilhar, mas percebeu, apavorada, que a pessoa que a segurava era extremamente forte. Porém, mesmo seu cérebro carregado de adrenalina conseguiu registrar que era uma mulher que a tinha capturado.

Uma voz aguda e rascante soou em seu ouvido:

– Me dê uma única razão para não matá-la agora, garotinha.

– Callisto! – soou outra voz, de algum ponto da floresta que Gabrielle não conseguiu enxergar – larga a mulher.

– Mas, Xena… – a mulher que a agarrava protestou.

– Me obedeça!

Quase tão bruscamente quanto a tinha agarrado a mulher a soltou e a empurrou. Gabrielle cambaleou e quase caiu no chão. Quando se equilibrou, virou-se para encarar a loira de olhos castanhos e armadura preta que andava ao lado da Conquistadora. Ouviu passos atrás de si e se virou novamente, dessa vez para ver a conquistadora em pessoa. Esta usava a mesma roupa de antes, com exceção da capa azul.

– Ela poderia estar se esgueirando para o acampamento para matar você – disse Callisto.

– Que? – protestou Gabrielle, lívida – eu estou só dando uma volta!

– Sozinha, à noite, na floresta? – Callisto retrucou.

– Você também está sozinha à noite na floresta – Gabrielle não conseguiu refrear as palavras.

– Como se atreve, sua… – a mulher de olhos castanhos ergueu a mão.

– Callisto! – a soberana bradou novamente, e a mulher estancou a mão no ar e depois baixou-a – olhe para ela… parece uma assassina para você?

Callisto deu alguns passos e se postou ao lado de Xena, sem deixar de encarar Gabrielle.

– Você sabe muito bem que não dá para se deixar enganar por aparências, Xena.

Gabrielle olhava de uma para a outra, sem saber como reagir.

– Garota – perguntou a governante – o que está fazendo a essas horas no meio do mato?

Na mente de Gabrielle surgiram as frases “Garota é uma ova”, “é minha vila e eu ando por onde bem entender e quando eu bem entender” e “eu poderia perguntar o mesmo de vocês”, mas lembrou-se que estava de frente à Imperatriz da Grécia e a uma mulher fortemente armada com ganas de matá-la.

– Estou apenas desfrutando de um passeio noturno, minha senhora – respondeu, sabendo que algum grau de despeito e desafio tinha saído em sua voz – jamais me passou pela cabeça que encontraria vossa excelência por aqui.

– Razoável o suficiente para mim – disse Xena – Callisto, volte para o acampamento.

– Mas…

– Vá!

A mulher loira a encarou mais um segundo depois deu as costas. Antes de sair, olhou para Xena e disse:

  • Não faça nada que eu não faria.

Xena riu.

  • Relaxe, mulher. Já passei dessa fase.

Callisto rosnou e sumiu dentro da floresta.

Xena passou alguns segundos olhando para o ponto onde Callisto tinha sumido e depois voltou-se para Gabrielle.

– Então… está planejando meu assassinato?

Gabrielle abriu e fechou a boca em silêncio. Fechou os olhos, respirou fundo e se empertigou, olhando diretamente nos olhos da conquistadora.

– Senhora, me perdoe. Como disse, não tinha ideia que estaria por aqui. De fato, estou apenas dando um passeio. Assassinato? Eu não consigo nem matar as galinhas que cozinho, meu marido que o faz.

A conquistadora caminhou até se aproximar de Gabrielle.

– Deve perdoar minha… associada. Ela é um pouco superprotetora.

– Tudo bem, é o trabalho dela – Gabrielle olhou de lado, desconfortável com a proximidade da imperatriz – me perdoe a insolência, senhora, mas o que faz você na floresta no meio da noite?

Gabrielle se arrependeu imediatamente de perguntar quando viu o rosto da imperatriz ficar sério e os olhos dela se estreitaram. Quase começava a pedir perdão, quando a mulher falou:

– Como você, gosto de caminhar pela floresta à noite, quando todos já se recolheram. Preciso de paz para organizar meus pensamentos. Talvez… – a governante estendeu o braço, como um cavalheiro faria a uma dama – queira me acompanhar?

Gabrielle olhou o braço estendido e tremeu.

– Perdoe-me senhora, mas acho que já passei tempo demais fora de casa. Devo voltar para a minha família, se vossa excelência me permitir.

Os olhos da conquistadora se estreitaram mais.

– Eu insisto – disse.

Gabrielle teve a impressão que lhe custaria alto recusar. Trêmula, enlaçou o braço da mulher.

– Então vamos – disse a loira.

Xena começou a caminhar de volta à trilha, acompanhada por Gabrielle.

– Gabrielle, tenho um pedido – a soberana falou, e Gabrielle percebeu um tom de cansaço na voz – poderia, por alguns breves momentos, fingir que não sou a conquistadora de toda a Grécia e me tratar como uma mulher normal enquanto passeamos?

Gabrielle se perguntava como tinha ido parar naquela situação surreal.

– Hum… creio que será um pouco difícil, senh..

– Xena.

– Realmente não sei se…

– Tem medo?

Gabrielle apertou os lábios.

– Sim. Muito.

Xena espiou brevemente a mulher ao lado dela.

– Ao menos é sincera.

– Excessivamente, segundo me contam, senh… – Gabrielle cerrou os punhos por um segundo depois os soltou – …Xena.

– Mesmo que eu prometa não fazer-lhe mal, independente do que você falar ou fizer, ainda assim sentiria medo?

Gabrielle sentia o coração na garganta. Apesar do medo, algo a impelia a continuar. Mesmo com todas as histórias que sabia sobre a conquistadora, não experimentava naquele momento uma sensação de ameaça vinda da mulher. Ergueu o rosto e se deparou com o olhar da soberana lhe fitando com algo de tristeza.

– Bem… nesse momento vou escolher acreditar que não me fará mal – respondeu, e a imperatriz lhe sorriu. Gabrielle sorriu de volta.

– Você já é mais corajosa que 90% dos meus soldados apenas com essa declaração, Gabrielle. Deve ser por isso que… – a conquistadora pausou.

Após alguns segundos de silêncio, a curiosidade de Gabrielle levou o melhor dela.

– Deve ser por isso que… o que?

Deram mais uns passos em silêncio e Xena continuou:

– Deve ser por isso que guardei seu rosto e seu nome.

– Oh… – Gabrielle olhou para os próprios pés – isso me surpreendeu, confesso.

– Diga-me, Gabrielle, tem algum lugar bonito nessa floresta que você possa me mostrar?

– Hummm – Gabrielle pensou – tem um lugar que não é exatamente bonito, mas eu gosto. Uma velha ponte quebrada à beira de um precipício.

Xena riu.

– Você gosta de coisas perigosas, Gabrielle?

– Pode-se dizer que sim. Embora…

Dessa vez, Gabrielle fez silêncio. Os pensamentos que a tinham atormentado há pouco voltaram com toda força.

– Embora… o que?

Gabrielle balançou a cabeça.

– Não quero perturbá-la com as angústias pueris de uma mera camponesa, senh… Xena.

– Oh, por favor, Gabrielle. Dê-me algo para pensar que não sejam as maquinações infindáveis da política. Além do mais, não precisa muito para perceber que você não é uma mera camponesa.

Gabrielle suspirou. Quem sabe compartilhando seus pensamentos justamente com aquela figura tão improvável conseguisse um alívio. Além do mais, a mulher iria embora no dia seguinte e não teria mais que pensar nisso.

– Quando eu era mais jovem, eu tinha sonhos – começou Gabrielle – eu queria sair de Potedia. Estudar em Atenas. Me tornar uma barda viajante. Conhecer o mundo, experimentar aventuras. Às vezes me sinto nostálgica dessa vida que eu perdi. Hoje me senti assim. Por isso vim passear aqui sozinha. Queria sentir por um momento que todas as possibilidades do mundo estavam abertas para mim. Mesmo sabendo que é uma ilusão – riu baixinho – isso deve soar tão piegas para você – parou diante de um cruzamento na trilha e apontou para a direita – a ponte é para esse lado.

– Então é para lá que vamos – disse a imperatriz – o que seu marido pensa disso?

– Eu não falo disso com ele. Pelo menos não há muitos anos – a loira deu de ombros – além do mais, ninguém nunca me levava a sério quando eu falava dessas coisas. Sempre me trataram como maluca. Acho que eu simplesmente… deixei pra lá. Eles provavelmente estão certos.

Xena permaneceu em silêncio. Gabrielle espiou rapidamente o rosto da mulher e se perguntou o quão entediante deveria ser para ela a conversa de uma pessoa comum. Após um tempo, a imperatriz rompeu o silêncio.

– Se considera feliz, Gabrielle?

Gabrielle deu de ombros.

– Não tenho do que me queixar.

– Não foi essa a pergunta.

Gabrielle fechou os olhos e respirou fundo.

– Tenho um marido amável e uma filha maravilhosa. Deveria ser suficiente.

– Mas não é.

– Não – a voz de Gabrielle tremia – não é. Mas… terá que ser.

O vento soprou com muito mais força, bagunçando os cabelos das duas mulheres quando chegaram perto do precipício. Xena fez menção de parar, mas Gabrielle a puxou até estarem tão próximas que podiam ver o rio que corria lá embaixo.

– Se me permite a pergunta… Xena – Gabrielle questionou – você se considera feliz?

Xena deu de ombros.

– Não tenho do que me queixar. Vivi uma vida de… aventuras, como queira chamar. Sou a mulher mais poderosa da Grécia.

Gabrielle piscou.

– Não foi essa a pergunta.

– Tenho um castelo, terras e riquezas que não conseguiria gastar nesta vida nem que eu me esforçasse. Deveria ser o suficiente.

– Mas não é?

– Não, Gabrielle – Xena mais uma vez encarou os olhos da pequena mulher ao seu lado – não é. Mas terá que ser.

Se encararam por longos segundos. Gabrielle se sentiu sem fôlego e voltou a fitar o precipício.

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