Vida
por DietrichJá era noite fechada. Apenas o fogo baixo da lareira iluminava a simples casa de pedra e madeira. Uma mulher de cabelos loiros e vestido azul celeste estava sentada numa cadeira próxima ao fogo, embalando uma criança que dormia em seu colo. A mulher olhava carinhosamente para a pequena. Era uma menina, também de cabelos loiros, que aparentava ter entre 4 e 5 anos.
O rangido da porta anunciou a chegada de alguém. A mulher ergueu o rosto e encarou o homem que adentrava a casa, repreendendo-o com o olhar. O homem sorriu e fechou a porta com o máximo cuidado, e o rangido dessa vez foi muito mais baixo.
Era um homem jovem, de cabelos escuros e olhos doces. Tinha o olhar cansado e estava sujo da cabeça aos pés. Ele se aproximou da mulher e beijou-lhe o topo da cabeça. Fez um carinho delicado nos cabelos loiros da criança adormecida e depois sentou-se na cadeira defronte à mulher.
– Então, como foi tudo? – perguntou, sussurrando, a mulher loira.
– Intenso – respondeu o homem, sua voz cansada como seu olhar – mas conseguimos deixar tudo pronto. Acho que a imperatriz não terá do que se queixar.
– Espero que não. Ela é uma mulher imprevisível.
– Isso ela é – o homem deixou o corpo se recostar mais na cadeira, fechou os olhos e passou a mão nos cabelos – mas nada comparado à última vez que ela passou por aqui.
– Nem me lembre – a mulher olhou para o fogo e um arrepio percorreu sua espinha.
5 anos atrás
Gabrielle levou um susto quando Perdicas abriu a porta de supetão e entrou correndo na casa. O homem estava lívido como quem tinha visto um fantasma. A loira foi até ele e indagou, com urgência na voz:
- Perd, o que houve?
O homem respirou fundo para se recuperar e soltou:
- Xena… está vindo na nossa direção.
Gabrielle arregalou os olhos e levou as mãos à boca. Seu rosto perdeu a cor.
- Deuses… o que vamos fazer? – murmurou a jovem.
Perdicas sentou trêmulo em uma das cadeiras, apoiando os cotovelos na mesa de madeira e esfregando o rosto.
– Eu estava com os anciões – o homem engoliu em seco – vamos juntar tudo que temos, colocar em carroças e esperar que isso seja o suficiente para que ela não… não…
– Nos mate a todos – completou Gabrielle, mais para si do que para o marido, sentando-se também à mesa.
– Gabrielle – Perdicas estendeu as mãos e segurou as da mulher, seu olhar era suplicante – pegue as coisas e vá, se esconda em algum lugar e…
A mulher meneou a cabeça e seu olhar foi o bastante para calar o homem.
– Esse tempo todo e ainda não me conhece? – murmurou a loira.
O homem suspirou com um sorriso conformado.
- Eu tinha que tentar – retrucou ele, amavelmente.
Gabrielle acariciou o rosto dele.
– Eu sei. Aconteça o que for, enfrentaremos juntos, certo?
Perdicas pegou a mão de Gabrielle e a beijou.
- Certo.
***
No dia seguinte, toda a população de Potedia se aglutinava atrás das carroças cheias de víveres e bens. Os anciãos estavam à frente, os homens, atrás, e as mulheres e crianças logo após. Apenas uma mulher, conhecida por todos na vila pelo alto grau de teimosia, estava junto aos homens, ao lado do seu marido, e ninguém conseguiu fazê-la arredar pé dali.
Todos prenderam a respiração quando o barulho inconfundível de uma tropa de cavalos se fez ouvir. Perdicas segurou a mão de Gabrielle, que a apertou firmemente. Alguns minutos após, um enorme exército apareceu diante deles.
Gabrielle sentiu que seu coração ia sair do peito. Liderando o exército estava uma mulher alta, de longos cabelos pretos e os olhos mais azuis que ela já tinha visto. Trajava uma armadura de couro azulada, com detalhes dourados. Xena, a Destruidora de Nações, uma lenda viva, cujas histórias eram entoadas por bardos em todas as tavernas. Nenhuma das descrições das diversas histórias faziam juz à presença imponente da guerreira.
Passou os olhos de relance pelo exército que estava atrás da mulher. Percebeu que, se aquelas pessoas decidissem esmagá-los, seria o fim de suas vidas. O medo, que ela vinha tentando evitar, dominou seu espírito, mas, ainda assim, seus olhos voltaram a fixar o rosto da mulher e de lá não conseguiram sair. Fez preces para que os rumores que contavam que a mulher estava um pouco mais ponderada agora que já tinha conquistado quase toda a Grécia, fossem verdade.
Xena desceu do cavalo com destreza, caminhou até eles, contemplou por um momento o rosto lívido dos aldeões e sorriu.
– Ora, ora – falou – quem diria que as ovelhinhas estariam tão bem preparadas.
O ancião líder deu um passo à frente e falou:
– Xena, Destruidora de Nações – o homem fez uma mesura – Reunimos tudo que tínhamos de valor para servir à vossa excelência e ajudar em vossa campanha, como prova de nossa boa vontade. Pedimos humildemente que apenas nos deixe com nossas casas e nossas vidas.
A mulher não respondeu. Caminhava em passos lentos, observando as carroças cheias. Tirou devagar a espada da bainha e o ruído do metal percorreu o ar, fazendo todos os aldeões se encolherem.
– Tudo de valor, an? – a morena girou a espada – então não vão se importar se meus homens derem uma olhada nas casas, certo?
Alguns aldeões se entreolharam com expressões contrariadas. O ancião líder suspirou e falou, olhando para o chão:
- Não nos importamos.
Xena fez um meneio de cabeça para os soldados e esses prontamente desceram dos cavalos e começaram a entrar nas casas e revirar as coisas. Enquanto isso, Xena se divertia observando as expressões fúnebres das pessoas ali presentes. Gostava do medo que despertava nas pessoas. Porém, um olhar específico chamou sua atenção. Um olhar que não baixou ou desviou quando o seu passou pelo dela.
Segurou o olhar naquele e avaliou. Havia medo sim, mas também interesse e curiosidade.
– Você aí – apontou com a espada – qual o seu nome?
Gabrielle olhou para os lados e percebeu que todos olhavam para ela. Engoliu em seco.
– Ga… Gabrielle – sua voz quase não saiu.
– Gabrielle – a guerreira apoiou a lâmina da espada no ombro direito – venha até aqui – fez um gesto com o indicador, apontando para o chão.
Perdicas apertou a mão de Gabrielle, como que para segurá-la, mas o gesto foi inútil, pois a loira sequer conseguia se mover. Uma voz sussurrou atrás, dizendo, essa garota, como sempre, só traz problemas. Ouvir aquilo fez seu corpo acordar e ela deu um passo hesitante adiante.
– Gaby, não! – Perdicas sussurrou exasperado, mas Gabrielle o repreendeu com o olhar, largando a mão do homem e saindo da multidão, em direção à onde estava Xena. Podia sentir os olhos de todos a seguindo.
Ecoaram nos ouvidos de Gabrielle algumas histórias sobre certas perversidades que os bardos relatavam serem os gostos da Conquistadora. Algo sobre sequestrar garotas em vilarejos, usá-las e depois abandonar seus pedaços nas florestas. Sentiu uma tontura repentina.
Quando estava de frente à morena, esta a olhou da cabeça aos pés. Um sorriso esguio surgiu no rosto da Conquistadora:
– Está de quantos meses? – disparou a guerreira.
Gabrielle sentiu o sangue subir ao rosto. Seu olhar cruzou rápido o de Perdicas que a olhava de queixo caído. Todos os aldeões alternavam entre olhar para Gabrielle e para o jovem rapaz cujo rosto era uma torrente de emoções diversas.
– É muda por acaso? Te fiz uma pergunta, garota – resmungou Xena.
Gabrielle tentou encontrar sua voz.
– Eu.. ar… – olhou para o chão, ainda rubra – estou com apenas um atraso, não tenho certeza.
Xena olhou para os aldeões, localizando o rosto pálido de Perdicas que olhava fixamente a situação. Riu.
– Pela cara do sujeito, eu estraguei a surpresa – deu de ombros – certo, garota. Não quero que você se borre de medo e acabe fazendo mal a esse pirralho ou pirralha. Volte para seu lugar.
Gabrielle olhou hesitante para Perdicas e sentiu um alívio quando viu que os lábios do homem se curvaram em um sorriso. Caminhou até ele, e ele não apenas segurou sua mão, como a afagou.
O momento de breve alívio foi cortado pelo retorno dos homens que tinham acabado de revistar todas as casas.
– Eles não mentiram, senhora conquistadora. As casas estão limpas – disse um dos soldados. Xena deu de ombros.
– Parece que não é hoje que vamos nos divertir, garotos. Carreguem os cavalos e deixemos esses pobres diabos em paz. Vocês – apontou para os homens da vila – ajudem meus homens. Mulheres e crianças, voltem aos seus afazeres.
Imediatamente todos, incluindo Perdicas, começaram a carregar os víveres nos cavalos do exército da conquistadora. Uma jovem de vestido verde e cabelos pretos correu até Gabrielle e puxou-a pela mão, levando-a até uma das casas. Quando adentraram, a jovem pulou em seus braços e a abraçou com força, quase derrubando-a.
– Calma, Lila! – riu Gabrielle.
A jovem a soltou e a olhou pressurosa.
– Gaby! É verdade?
– Acho que sim – Gabrielle respondeu sorrindo. Sem pensar, acabou colocando a mão sobre a barriga.
– Não acredito! Vou ser tia! – Lila riu e segurou a mão de Gabrielle – quem diria, hein? Logo você!
– Como assim, logo eu? – Gabrielle questionou a irmã de forma matreira.
– Ora, você era que tinha aquelas bobagens que ia sair pelo mundo vivendo aventuras e nunca ia casar! Acabou passando na minha frente e do Hector! O Perd não sabia mesmo?
– Nem eu tenho muita certeza ainda – Gabrielle respondeu – ia esperar mais para falar algo, mas… como Hades – baixou a voz – aquela mulher sabia?
– Prefiro nem saber – Lila balançou a cabeça – sabe-se lá que tipo de pacto ela tem, e com quem. Mas pouco importa. Ainda bem que ela aceitou as coisas e vai nos deixar em paz.
– Sim, ainda bem. Vamos ver o que o pessoal está fazendo?
– Você tá maluca? Vamos ficar aqui protegidas.
– Eu vou sair e ver.
– Gaby! Deixa de ser imprudente. Não pode pensar só em você agora. Tem que pensar no bebê.
Gabrielle abriu a boca para argumentar, mas a realidade caiu sobre ela. Recuou e sentou-se à mesa, encarando a porta da casa.
Tempo presente
– E pensar que foi ela que me comunicou sobre Rhea – disse Perdicas, fitando a menina adormecida com um sorriso no rosto.
– Você tá imundo – disse Gabrielle erguendo uma sobrancelha – vai banhar e comer algo. A tina já está cheia.
– Estou indo, estou indo – respondeu Perdicas, levantando-se, arrastando os pés e se dirigindo ao banheiro. Gabrielle o acompanhou com os olhos, depois se voltou para o crepitar lento das chamas baixas da lareira.
Algo a dizer? Elogios ou críticas construtivas? Deixa um comentário, mas só se quiser.