Volta
por DietrichA claridade suave do sol inundava o campo, refletindo-se no brilho dourado do trigo ao vento. Xena sentia a textura dos grãos sob seus pés descalços, como um abraço quente da terra. Ao seu lado, Gabrielle ria, aquela risada leve e melodiosa que fazia o coração de Xena vibrar. Rhea e Solan corriam adiante, brincando de esconder-se entre as altas espigas, suas vozes ecoando como uma melodia despreocupada. Era um dia comum, mas pleno de uma paz que Xena raramente sentia, como se o mundo tivesse finalmente encontrado harmonia.
Gabrielle a observava com seus olhos gentis, um olhar que tinha o poder de fazer Xena perder a razão. Quando ela se aproximou, Xena pôde sentir o aroma familiar de ervas e mel que sempre acompanhava Gabrielle. As duas se entreolharam, e o tempo pareceu se estender naquele momento. Gabrielle tocou o rosto de Xena com delicadeza, os dedos deslizando pela sua pele em um carinho silencioso, mas repleto de promessas. Sem dizer nada, Gabrielle puxou-a para um beijo; seus lábios se encontraram com uma doçura que Xena quase esquecera que existia. Era como tocar o impossível: um calor que preenchia cada pedaço de seu ser, apagando qualquer sombra.
Por um momento sublime, não existiu nada além do sabor do beijo de Gabrielle, o conforto da brisa em suas peles, as risadas gostosas das crianças ao longe. Era tão perfeito, que sequer teve tempo de pensar que talvez não merecesse tanta paz. Seu coração aceitou a felicidade que o destino escolhera lhe dar de presente.
Xena acordou, a respiração ainda entrecortada. O quarto estava mergulhado na penumbra da madrugada. Ficou ali, imóvel, sentindo o coração bater forte, como se tivesse acabado de viver aquele momento. Ela fechou os olhos, tentando reter a sensação, aquele calor de amor e paz, o beijo suave que parecia ainda presente em seus lábios.
Desde que Gabrielle partira, ela não tivera um único sonho – apenas um vazio sombrio preenchia suas noites. Xena sentiu o corpo tremer com uma euforia incontida. Ela soube, com uma certeza que jamais experimentara, que o sonho daquela noite, significava que Gabrielle tinha vencido a maldição. E que estava retornando para ela.
Aquela convicção cresceu como uma chama que iluminou os cantos mais obscuros de sua alma.
***
A clareira estava envolta pela quietude da tarde, o calor do sol filtrando-se pelas árvores altas, criando manchas douradas no chão de folhas secas. Gabrielle caminhou vagarosamente, seus pés afundando nas folhas macias, até o pequeno séquito de Amazonas que a observava, o peito apertado pela emoção.
Ergueu os olhos e contemplou aquelas mulheres incríveis. Ao lado de Cyane, a rainha, estava Yakut, seus olhos profundos e serenos fixos em Gabrielle com uma admiração silenciosa. Gabrielle respirou fundo, antes de falar, suas palavras carregadas de gratidão e respeito.
– Não tenho palavras suficientes para agradecer a vocês. Obrigada por me ajudarem a vencer a maldição de Alti e salvar o meu amor. Lhes devo minha vida e minha felicidade.
As Amazonas, com seus corpos marcados por batalhas e histórias, ouviram em silêncio, e acenaram de forma solene em reconhecimento à gratidão de Gabrielle. Yakut deu um passo à frente, o semblante grave, mas cheio de respeito.
– Foi inesperado, Gabrielle. Nós imaginávamos que o fim de Alti seria marcado pela destruição de seu poder. Mas, no fim, você encontrou algo muito mais poderoso, algo que Alti nunca soubera compreender. Por isso, temos para com você também uma dívida eterna de gratidão – Yakut se curvou, num gesto de reverência.
Gabrielle sentiu o calor de lágrimas ameaçando seus olhos, mas manteve-se firme. Olhou para Terreis ao seu lado, que lhe devolveu um sorriso de apoio e confiança. O peso da jornada estava finalmente sendo dissipado, e havia uma leveza em seu coração que ela não sabia que poderia existir. Yakut continuou, a voz firme como as montanhas:
– Você trouxe paz, não só para si mesma, mas para todas nós, Gabrielle. E isso é algo que jamais esqueceremos. Agora, é hora de seguir. Teu amor te espera.
Ouvir aquelas palavras encheu Gabrielle de uma alegria incomensurável. A ideia de voltar para Xena, sem maldições, sem dor, a ideia de simplesmente poder existir nos braços dela a encheu de júbilo. Ela deu um último aceno às amazonas e ela e Terreis se dirigiram aos cavalos já preparados, montando-os e partindo.
Cada galope do cavalo diminuía a distância entre ela e Xena e aumentava o entusiasmo em seu coração.
***
A noite envolvia a clareira onde Gabrielle e Terreis montaram o acampamento, uma noite fria e serena, adornada pelo brilho das estrelas. As duas estavam deitadas lado a lado, abraçadas, compartilhando o calor e a intimidade que haviam encontrado durante a jornada. Gabrielle sentia o peito leve, preenchido por uma quietude rara, enquanto as estrelas pareciam pulsar com uma doçura que há muito tempo ela não sentia.
Ela respirou fundo, com o coração acelerado ao se lembrar dos momentos de vulnerabilidade e conforto que compartilhara com Terreis. Gabrielle fitou a amazona de relance, um leve rubor aquecendo-lhe as faces.
– Terreis… quero que saiba o quanto sou grata por tudo. Pelo modo como esteve comigo, pelo conforto que me deu. Eu acho que não teria conseguido sem você ao meu lado.
Terreis a olhou com carinho, os olhos brilhando na luz tênue da fogueira. Sem desviar o olhar, ela levou uma mão gentil ao rosto de Gabrielle, traçando suavemente uma linha com o polegar pela pele aquecida e macia.
– Eu não faria nada diferente – disse a amazona, sua voz carregada de amor incontido, mas também um toque de tristeza – eu iria até os confins do mundo para te proteger.
Gabrielle sentiu o peito apertar de uma forma doce e profunda. A sinceridade nos olhos de Terreis tocava-a de uma maneira que nem todas as palavras do mundo poderiam explicar. Ela ainda sentia a lembrança da noite em que se entregaram ao consolo físico, um momento que aliviara sua alma atormentada e trouxera à tona sentimentos que ainda tentava compreender.
Terreis sorriu, como se soubesse o que passava na mente de Gabrielle, e afagou-lhe o cabelo, sua voz baixa e suave.
– Gabrielle, espero que saiba que meu coração está em paz… e por isso o seu deve ficar também – a voz tinha um toque de repreensão.
Gabrielle desviou os olhos um minuto, sem conseguir pensar numa resposta. Terreis pegou delicadamente o queixo de Gabrielle, num pedido discreto para que ela não desviasse os olhos.
– Eu entendo o que aconteceu, e eu não me arrependo de nada – falou a amazona. Ela pegou a mão de Gabrielle e a beijou – e espero que você também não.
– Eu não me arrependo – disse Gabrielle, com voz embargada.
Terreis sorriu, aliviada.
– O que eu desejo é ver você feliz – falou a amazona – não importa onde você esteja ou com quem esteja, se puder me ter como amiga e guardiã, estarei completa.
Gabrielle sentiu uma lágrima silenciosa ameaçar se formar, mas apenas sorriu, retribuindo o toque carinhoso. Ela levou a mão ao peito de Terreis, sentindo a pulsação firme e constante, ancorando-se naquele instante.
– Obrigada, Terreis… por tudo.
Em um silêncio cheio de ternura, elas se acomodaram, Gabrielle repousando a cabeça no ombro de Terreis, enquanto esta lhe envolvia com um abraço caloroso. Seus corpos se entrelaçaram e a serenidade daquela noite abraçou-as, cada uma imersa em seus próprios pensamentos, mas conectadas pelo conforto mútuo.
E assim, sob o céu estrelado, com o som do vento suave entre as folhas, Gabrielle e Terreis adormeceram, seus corações tranquilos.
***
A reunião seguia com sua monotonia costumeira na grande sala de conselhos, onde Xena, impassível, ouvia um dos nobres explanar detalhadamente sobre a burocracia das tarifas de transporte entre as províncias. Outro discutia, com um certo desespero, os problemas com as colheitas e o abastecimento nas aldeias mais distantes. Xena mantinha os olhos fixos, mas sua mente estava distante, vagando para longe de cada detalhe enfadonho e palavra formalizada.
A porta então se abriu de forma inesperada, e um guarda adentrou apressado, um brilho de entusiasmo e urgência em seu semblante.
– Majestade, Gabrielle retornou ao castelo – anunciou ele.
No instante em que ouviu o nome de Gabrielle, o coração de Xena deu um salto. Ela se levantou da cadeira num átimo e atravessou a sala com passos rápidos, deixando para trás os conselheiros boquiabertos e perplexos.
Xena caminhou pelos corredores com passos largos, quase correndo, o coração batendo forte, guiada por um impulso irreprimível. Atravessou o que pareciam corredores infinitos. Ao chegar ao salão de entrada, avistou Gabrielle – exausta, os cabelos desgrenhados da viagem, mas com um leve sorriso no rosto, os olhos brilhando de alegria e alívio por estar de volta.
Xena sentiu que poderia cair de joelhos diante da alegria quase dolorosa que a trespassou. Sem hesitar, atravessou a sala e foi ao encontro dela, ignorando a presença dos guardas e servos ao redor.
Envolveu Gabrielle em seus braços com força, seu corpo inteiro tremendo com emoções que estavam além de sua compreensão. Deixou a sensação daquele corpo próximo ao seu, do perfume que só Gabrielle tinha a tomarem por inteiro. Seus lábios ansiosos buscaram o rosto de Gabrielle, depois seus lábios, encontrando lá o descanso de sua alma.
Nenhuma palavra conseguiu se formar, mas Gabrielle não segurou a cascata de lágrimas que desceu de seus olhos ao se ver finalmente nos braços de Xena. Agarrou-se a ela com convicção de que dali em diante faria de tudo para passar o máximo de tempo possível dentro deles. Passou pela sua mente murmurar que estava suja e fedida, mas a boca de Xena a calou e ela esqueceu qualquer coisa.
Era dor, saudade e reencontro, o inefável que permeia duas almas destinadas quando elas se conectam.
As pessoas ao redor pararam, trocando olhares surpresos, boquiabertos com a cena inesperada. Jamais tinha visto sua soberana abraçar uma pessoa, muito menos beijá-la. Terreis, de pé ao lado, deu alguns passos para trás e baixou a cabeça, um sorriso maroto curvando seus lábios.